Com o título “O Mara Hope, o São Pedro e uma cidade cuja história desaparece”, eis artigo de Marcos Robério Santo, jornalista. “Como Atlântida, coberta pelo oceano, ou Pompéia, soterrada por cinzas, Fortaleza assiste à destruição por terra e mar de ícones de sua história recente”, expõe o articulista.
Confira:
Há algumas semanas, parte do Mara Hope – navio que encalhou em 1985 em Fortaleza e passou a fazer parte da paisagem da orla – cedeu e afundou. Não há muito o que fazer. Com o tempo, é natural que o mesmo ocorra com o restante da embarcação, que aos poucos vai sendo corroída pelas intempéries típicas do ambiente marinho. O que não é natural é que o mesmo ocorra com as construções em terra firme numa cidade dita civilizada. Pois civilização (à parte todos os poréns que esse termo implica) pressupõe alguma mínima preservação daquilo que se construiu, algo que está diretamente associado à ideia de cultura e identidade de um lugar.
Nesse sentido, o Mara Hope torna-se um triste símbolo de uma cidade cuja história material vai aos poucos desaparecendo. Uma mostra disso é que, ironicamente, na mesma semana em que parte do navio cedeu, a Prefeitura anunciou que o edifício São Pedro, na Praia de Iracema, será demolido. A derrubada já está em curso. Tal qual a lendária Atlântida, coberta pelo oceano, ou como Pompéia, soterrada por cinzas, Fortaleza assiste à destruição por terra e mar de ícones de sua história recente.
E aqui o verbo “assistir”, no sentido de observar, não é empregado por acaso. A demolição do edifício São Pedro, assim como tantas outras construções históricas que vieram abaixo ou foram desfiguradas nos últimos anos, ocorre após longo tempo de omissão do poder público, em diferentes gestões, agindo em consonância mal disfarçada com parte do empresariado local.
À exceção do trabalho sério de alguns profissionais e órgãos que buscam preservar o patrimônio histórico e cultural, em geral os responsáveis imediatos assistem a tudo com um “silêncio sorridente”, como canta o Caetano em “Haiti”, o mesmo Caetano que em outra composição lembra que “nossas cidades foram construídas para serem destruídas”.
Ou seja, essa omissão e esse “esquecimento”, que a princípio soam como passividade, são, na verdade, parte de um projeto bastante ativo de desintegração e de apagamento histórico em prol de interesses financeiros, valores corporativos e vieses funcionais. Só para citar um exemplo, lembremos do bangalô azul, antiga construção no bairro Joaquim Távora que foi demolida em 2013, após decisão liminar da Justiça, mesmo estando em processo para ser reconhecido como patrimônio histórico. Deu lugar a um moderno condomínio residencial. E isso é o que ocorre nos bairros ricos. Nas periferias, então, geralmente o que se faz com o patrimônio histórico e cultural não vira notícia nem rende discussão nos círculos de intelectuais.
A lógica é deixar o tempo passar, sem grandes esforços para acordos com proprietários, sem projetos concretos que deem vida aos espaços mantendo suas características originais, e sem proteção contra intervenções grotescas. Assim fica mais fácil justificar posteriormente uma demolição ou desfiguração, pois é “o que resta a fazer”, já que “não dá mais” para ser de outra forma. O problema está nos fundamentos, não das construções, mas da lógica que sustenta o discurso, incapaz de levar em conta o que existe para além do que se vê.
Isso mexe com a própria noção de tempo da cidade, pois aqui uma construção dos anos 60, por exemplo, já é vista como antiga, não porque se quer protegê-la e valorizá-la historicamente e culturalmente, mas porque ela foge do padrão de um lugar onde só se enxerga o que é “novo”. E assim Fortaleza vai ficando cada vez mais carente de seus já escassos símbolos, cada vez mais desmemoriada, disforme, cafona mesmo. Uma cidade que, por estar apartada de seu passado, fica menos interessante em seu presente.
*Marcos Robério Santo
Jornalista.