Com o título “A visual decadência das cidades”, eis artigo de Dalto Rosado, advogado. “Ou mudamos o nosso modo de produção e distribuição de bens necessários ao consumo, colocando a tecnologia ao nosso favor e bem-estar, ou vamos sucumbir diante da inviabilidade de vida social configurada na paralisia da falência capitalista e do seu estado mantenedor”, expõe o articulista.
Confira:
É visível o nexo causal das mutações sociais em curso provocadas pela era da terceira revolução industrial da microeletrônica e sua inadaptação às relações sociais próprias ao patriarcado do sistema produtor de mercadorias.
Em nenhum momento da história houve tão profundas e rápidas transformações de hábitos comportamentais e de produção de mercadorias e serviços em face da inconciliabilidade entre forma e conteúdo nas relações sociais capitalistas como as que estão a ocorrer nos últimos cinquenta anos.
A tecnologia da era cibernética da microeletrônica trouxe consigo a mais profunda mutação própria ao processo dialético histórico já havido anteriormente… e pode se tornar revolucionária, caso possamos compreender o seu uso socialmente necessário.
Entretanto, tal inconciliabilidade está a exigir novos conceitos de produção e serviços sociais justamente porque ao invés de trazer comodidade de vida às pessoas, proporcionada pelos ganhos do saber adquirido, está a promover a decadência social de modo acentuado e perigoso (todo dia se ouve falar em guerra nuclear).
Sabemos ir à Marte e não sabemos como aplacar a fome no mundo, que está aumentando;
– sabemos muito sobre genética humana, e estamos promovendo a destruição da vida por aquecimento do Planeta;
– fazemos cálculos antes inimagináveis em segundos, e ignoramos os números da tragédia vivida pela humanidade;
– sabemos racionalmente da importância da paz, e nos armamos com máquinas da morte cada vez mais sofisticadas para a promoção da guerra, e por aí vai…
Ou mudamos o nosso modo de produção e distribuição de bens necessários ao consumo, colocando a tecnologia ao nosso favor e bem-estar, ou vamos sucumbir diante da inviabilidade de vida social configurada na paralisia da falência capitalista e do seu estado mantenedor.
Não se produz porque não se vende, e não se vende porque não se produz. A cobra está a comer a sua própria cauda.
Em qualquer cidade do mundo capitalista, nas quais a cisão social foi sempre perceptível, mais ou menos acentuada dependendo do país nas quais elas ocorrem (nas ilhas de prosperidade capitalista, como nos países do G7, isso também ocorre, ainda que em menor proporção), observam-se dois fenômenos visualmente perceptíveis:
– crise habitacional para os pobres e enclausuramento dos ricos nos condomínios de luxo por medo da violência urbana;
– fechamento de lojas nos tradicionais centros comerciais e a fuga destas para os shoppings centers.
A questão do fechamento das lojas se prende a dois fatores básicos: as compras pelo sistema de delivery por aplicativos e o crescimento dos assaltos à mão armada. A segurança de shoppings centers e condomínios fechados aliados às compras e serviços que são efetuadas por aplicativos transformaram os hábitos de uma forma generalizada.
Tudo se faz e se conversa por intermédio de celulares e a comunicação eletrônica por estes aparelhos e computadores é preponderante. Já se conversa com o vizinho de mesa por telefone, e em qualquer fila de espera e 80% de todas as pessoas que ali estão têm os olhos fixos na telinha.
Advogados peticionam eletronicamente; os processos são digitalizados; as audiências são virtuais, e a vida sem interação humana é cada vez mais individualista. Idem, idem para cálculos de engenharia e desenhos arquitetônicos; resultados de consultas médicas e até cirurgias à distância, etc., etc, etc.
Nas grandes fábricas impera a robotização que substitui os operários, que desempregados, mendigam os empregos que sempre os escravizaram, e já não têm força de exigência e pressão por melhores salários; já se contentam com a preservação do emprego cada vez mais precarizado e temem os frequentes cortes de pessoal.
Em Fortaleza, cidade na qual vivo e pela qual me apaixonei desde que cheguei há 54 anos, a cisão social que sempre existiu agora toma ares dramáticos.
Em contraste com uma Beira-Mar lindíssima (uma das mais belas do país), iluminada pelo sol do ano todo e pelas luzes de neon durante a noite com seus prédios luxuosos margeando os belíssimos verdes mares cantados em prosa e verso, verificam-se, à pouca distância, a imagem da decadência.
A Praia do Futuro tem um presente de favelamento crescente por conta de que a mercadoria terra não é acessível a quem ganha salário-mínimo ou vive do bolsa família e agradece aos Céus a forte maresia que por lá tudo corrói e afasta os moradores ricaços de um cenário deslumbrante de Mar, Dunas e Praia.
Como na Praia do Futuro, o presente de favelamento na periferia é a tônica de moradias sem a mínima estrutura urbana de habitação.
Até mesmo nos bairros ricos de uma cidade de cerca 2,6 milhões de habitantes (mas cercada por um cinturão de pobreza), vemos casas sem pinturas, lojas fechadas, ruas esburacadas, precária coleta de lixo, homens maltrapilhos carregando carrinhos-de-mãos da coleta de objetos para reciclagem, zumbis viciados e escravizados pelo consumo do crack devastador, insegurança causada pelos altos índices de violência urbana, num cenário que me entristece e aterroriza.
As praças públicas dos bairros elegantes estão tomadas por moradores em situação de rua que improvisam barracos de proteção nesses tempos de chuva no nordeste do Brasil. Em frente à Faculdade de Direito onde estudei, outrora um ambiente solene e de vida política pulsante, pululam abrigos de papelão nas suas marquises improvisados pelos seres que por ali vivem o seu desespero; idem, idem na Praça da Bandeira, em frente à velha cátedra.
Nos bairros pobres, de casas sem esgoto sanitário e ruas mal-cuidadas, as casas sem pinturas emolduram a face triste e perplexa de uma população que sequer compreende o porquê de tanta tecnologia em contraste com a precarização de suas vidas sem perspectivas.
Mas o fenômeno não é circunscrito apenas a uma cidade nordestina que hoje disputa a terceira posição populacional conforme nos informa o IBGE, mas se repete em todas as grandes cidades brasileiras, numa prova de que não é uma questão de má-administração pública localizada, mas de uma realidade sistêmica.
O que dizer de São Paulo, a meca do capitalismo da América Latina, com seus problemas de verdadeiras multidões ocupando espaços para o consumo de entorpecentes, conhecidas como cracolândias?
Também por lá são comuns as ocupações de espaços por sem tetos e em contraste com uma Avenida Paulista e suas suntuosas catedrais do mundo empresarial e financeiro, e que servem como moldura da decadência no seu entorno a desfigurar e denunciar a ilusória imagem de progresso e de sua “feia fumaça que sobe encobrindo as estrelas” (da música Sampa, de Caetano Veloso).
Precisamos de uma reflexão sobre tudo isto!
Não se trata de uma polarização entre a direita recalcitrante e retrógrada e a oposição a ela por partidos mais ao centro ou à esquerda na geopolítica conformista, mas da urgente adaptação dos saberes adquiridos pela humanidade ao longo de séculos e que ora se condensam de tal forma científica aplicada à lógica funcional de uma relação social segregacionista e autofágica que expõe a necessidade de efetivação de pressupostos adequados à nova realidade social.
Desculpe, minha Fortaleza querida, se lhe tratamos tão mal.
*Dalton Rosado,
Advogado e ex-secretário de Finanças de Fortaleza (Gestão Maria Luiza Fontenele)
P.S. Imagem: Praça do Ferreira com Coreto na década de 1920 e vista do Cine Majestic – Nirez.
*Artigo que pode ser lido no site Segunda Opinião aqui