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“Os esgotos da Beira-Mar: sinais de outros esgotamentos”

Marcos Robério Santo é jornalista. Foto: Arquivo Pessoal.

Com o título “Os esgotos da Beira-Mar: sinais de outros esgotamentos”, eis artigo de Marcos Robério Santo, jornalista. “O problema é de fundamento. Ainda continuamos levando a cabo aquele velho ideal de Francis Bacon (1561-1626), de que o conhecimento deveria servir para dominar a natureza e subjugá-la aos interesses humanos. Falar de aquecimento global e de outras urgências planetárias sem refletir sobre o que fazemos em nosso quintal é coisa de quem ainda não entendeu o problema”, expõe o articulista.

Confira:

Há pouco mais de um mês teve início uma polêmica entre a Prefeitura de Fortaleza e a administração estadual, através da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece). O motivo foi a grande mancha de sujeira que apareceu no mar, no início de novembro, próximo à avenida Beira-Mar, um dos principais cartões-postais da capital. De lá para cá houve uma série de acusações sobre as muitas ligações clandestinas de esgoto facilmente vistas em trechos da orla. Para além do embate público e do “toma que o esgoto é teu”, a situação aponta para outros tipos de esgotamento: o de como o poder público local lida com o mar, o do modelo predatório de turismo e o do modo pouco republicano de fazer política.

A visão que diferentes gestões municipais e estaduais têm tido sobre o mar de Fortaleza está esgotada. Na parte mais rica da orla, por exemplo, uma série de intervenções nos últimos anos demonstram que a relação da cidade com seu grande ícone natural não é de harmonia, mas de tensão, embate, confronto.

Espigões, dragagens e aterramentos que resultaram em grande profundidade já nos primeiros passos na água são alguns exemplos. Argumenta-se que tudo isso é necessário para “urbanizar” a área, torná-la mais segura, mais bonita (como se praia precisasse de enfeite). Fala-se em “invasão” do mar, assim como já se falou que na Sabiaguaba uma duna “invadiu” a pista, numa tragicômica inversão de perspectiva. Essa relação conflituosa também se dá nas poucas áreas verdes da cidade (sobre isso, sugiro acompanhar o perfil do jornalista Demitri Túlio no Instagram).

O problema é de fundamento. Ainda continuamos levando a cabo aquele velho ideal de Francis Bacon (1561-1626), de que o conhecimento deveria servir para dominar a natureza e subjugá-la aos interesses humanos. Falar de aquecimento global e de outras urgências planetárias sem refletir sobre o que fazemos em nosso quintal é coisa de quem ainda não entendeu o problema.

Associado a isso, está esgotado também nosso modelo predatório de turismo. Durante o ano todo, milhares de turistas vêm “conhecer Fortaleza”. Nos períodos de férias, a taxa de ocupação dos hotéis da Beira-Mar costuma dar um salto e os gestores públicos comemoram, avaliando que o turismo gera renda e movimenta a economia local, o que é verdade. Logicamente, porém, isso vem acompanhado de algum impacto ambiental. Toneladas de lixo e dejetos são jogadas de diferentes formas no mar e no aterro. Este ano, o Réveillon se transformou em micareta e haverá três dias de festa. Tenho dúvidas se isso é suportável para uma praia e, se sim, a que custo.

Por fim, a atual polêmica entre Prefeitura e Cagece em relação à poluição na Beira-Mar expõe também o esgotamento de um jeito de fazer política. No início do caso, após técnicos da Prefeitura fazerem uma inspeção em ligações clandestinas, o prefeito José Sarto (PDT) foi às redes sociais dizer que haviam sido identificadas “irregularidades feitas pela Cagece”. Após também realizar trabalho técnico em campo, a Cagece rebateu e disse que as ligações clandestinas eram oriundas de particulares e que a fiscalização disso caberia à Prefeitura.

Para além da discussão sobre quem tem ou não razão, me parece inadequado que o prefeito tenha se apressado a apontar publicamente como culpado um outro ente público. Da forma que foi, fica parecendo algo para agitar apoiadores na facilmente inflamável arena digital, como se estivesse em permanente campanha – lembre-se que Sarto e o governador do Estado, Elmano de Freitas (PT), andam se estranhando e atualmente estão em campos não exatamente opostos, mas conflitantes. E ano que vem tem eleição para prefeito e vereador. O expediente agora usado por Sarto não é novidade e já foi utilizado por Luizianne Lins (PT), que, quando prefeita, também travou embate com a Cagece, daquela vez devido aos buracos nas vias da cidade. Na época, Luizianne estava em rota de colisão com o então governador Cid Gomes (hoje no PDT).

O diálogo franco, direto e objetivo voltado à resolução de problemas deveria ser praxe na administração pública, pois pouco interessa ao cidadão qual é o gestor ou órgão responsável, mas sim que a questão seja resolvida da melhor e mais célere forma possível.

Em tempo: esgotamento, em sentido filosófico, nem sempre é algo negativo. Esgotamento implica que algo se exauriu, que uma coisa não pode mais continuar sendo feita da mesma forma. É aquele ponto em que dizemos “assim, não dá mais”. E nisso há algo potencialmente ativo, que pode gerar outras formas de fazer e de viver. Nosso esgotamento, seja ele ambiental, turístico ou político, faz parte de um esgotamento maior, que é o de um modelo econômico e de um modo de vida. Mas parece que isso ainda não foi percebido. Ou, se foi, temos sido no mínimo negligentes.

*Marcos Robério Santo

Jornalista,

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