Com o título “Confissões de uma muriçoca”, eis mais um conto da lavra de Totonho Laprovitera, arquiteto urbanista, escritor e artista plástico.
“O chato da muriçoca não é a picada, é o zumbido no pé do ouvido.” (Dito popular)
Confira:
Ao ler sobre a relação de Franz Kafka (1883-1924) com a barata – aquela que aparece em sua obra mais célebre, “A Metamorfose”, onde Gregor Samsa acorda transformado em um “inseto monstruoso” – resolvi experimentar por um instante a vivência de ser uma muriçoca.
Pois bem. Indo direto ao assunto: não entendo essa repulsa que os humanos têm por nós. Só queremos um tiquinho de sangue – muito menos que uma gotinhamixuruca – e já nos tratam como se fôssemos vampiros. Agora, digam: o que há nessas orelhas de vocês para nos atrair tanto? É o cheiro, o calor, ou algum segredo escondido? São irresistíveis! Não nos basta picar, a verdade é que gostamos mesmo é de zumbir. O zunido é o nosso jeito de cantar: “Tô aqui, lhe fazendo companhia…”
E quando conseguem esmagar uma de nós na mão, acham-se heróis. Comemoram como quem marca gol em final de campeonato, ainda olhando para a palma manchada de sangue e repetindo, orgulhosos: “Fui eu.” Ora, claro que foi.
Mas o que mais nos entristece são as crueldades que vocês inventam. Aquela lâmpada azul, que nos atrai feito canto de sereia, e de repente – zap! – lá estamos nós, pipocando em faíscas, enquanto vocês aplaudem o espetáculo. Falando em palmas, temos até medo de teatro e de shows musicais: já imaginou o pavor que sentimos quando a plateia inteira começa a bater mãos ao mesmo tempo? E a tal raquete elétrica, então… vocês a seguram como se fosse espada de cavaleiro medieval. Um estalo só, e pronto: viramos cinza.
E não me venham dizer que isso não é ódio, não. Vocês matam baratas por nojo, moscas por incômodo, mas a nós… ah, a nós é pura raiva.
Quase, só aparecemos quando o calor acocha. No frio, vocês se encolhem debaixo do lençol e nós os deixamos em paz. Mas basta uma noite quente, janela entreaberta, que lá vamos nós, com a nossa cantiga de ninar: “Zium, zum, bziiii…”
E no verão, então… uma delícia! A família toda se reúne – um banquete legal!
Pois é, dizem que somos praga, que estragamos o sono. Pode ser. Mas olhem pelo outro lado: somos pequenos, frágeis, apenas tentando sobreviver – e ainda assim conseguimos despertar medo em gigantes.
Agora, cá entre nós: enquanto vocês nos destratam, bufam e levantam a raquete, nós rimos. Porque sabemos de uma coisa simples e certeira: na próxima noite, voltaremos de novo.
Durmam bem.
*Totonho Laprovitera
Arquiteto urbanista, escritor e artista plástico.
Uma resposta
Espetacular!
Parabéns!
Mas dê uma folguinha hoje à noite.