“Do café à energia: quando a abundância vira desafio para o Brasil” – Por Machidovel Trigueiro Filho

Machidovel Trigueiro é também vice-diretor da Faculdade de Direito da UFC. Foto: Divulgação

Com o título “Do café à energia: quando a abundância vira desafio para o Brasil”, eis artigo de Machidovel Trigueiro Filho, vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e secretário Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico de Caucaia.

Confira:

O Brasil vive, em 2025, uma situação paradoxal no setor elétrico. A rápida expansão da geração de energia, especialmente das fontes renováveis — solar e eólica —, tem provocado sobras em determinados horários e regiões, desafiando a capacidade de escoamento e de gerenciamento do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Esse excesso, em vez de ser integralmente aproveitado, resulta em desperdício ou em cortes compulsórios de geração, fenômeno que remete ao início do século XX, quando o governo brasileiro foi obrigado a queimar parte da produção de café para evitar o colapso dos preços internacionais.

A matriz elétrica brasileira é majoritariamente limpa, com predominância de fontes renováveis. O avanço da geração solar distribuída, somado à expansão de grandes parques eólicos e solares no Nordeste, produziu um excedente de energia que sobrecarrega o ONS, especialmente em horários de baixa demanda. Para manter o equilíbrio do sistema, muitas vezes é necessário reduzir a produção de hidrelétricas ou até desligar usinas renováveis. Esse cenário provoca perdas econômicas: os empreendedores enfrentam o chamado curtailment (redução forçada da geração), que compromete a viabilidade de projetos, gera insegurança regulatória e expõe a ineficiência do sistema. O paradoxo é evidente: mesmo com sobra de energia, os consumidores continuam pagando tarifas elevadas, pressionadas por encargos e pela falta de instrumentos para valorizar e redistribuir o excedente.

A analogia com o café é inevitável. Na década de 1930, o Brasil, maior produtor mundial, enfrentou uma crise de superprodução e, sem alternativas de escoamento, a solução encontrada foi a destruição de milhões de sacas para sustentar os preços no mercado externo. Assim como o café, a energia elétrica é um bem perecível: se não for consumida ou armazenada no momento adequado, perde valor ou simplesmente se perde.

Diante desse desafio, cabe a pergunta: quais são os caminhos para transformar abundância em oportunidade? Ao contrário do café, a energia pode ganhar novos destinos se houver inovação tecnológica e regulatória. Entre as principais soluções estão:

1. Armazenamento em baterias de larga escala, possibilitando guardar excedentes para uso nos horários de pico;
2. Produção de hidrogênio verde, com a conversão do excedente em combustível limpo para abastecer novos mercados e impulsionar exportações;
3. Usinas reversíveis (pumped storage), que permitem reaproveitar a energia hídricapor meio do bombeamento em períodos de sobra.

Outro caminho essencial é a expansão da infraestrutura de transmissão, ampliando a integração do Sistema Interligado Nacional (SIN) e reduzindo gargalos de escoamento. A integração energética com países vizinhos, como Argentina, Uruguai e Bolívia, por exemplo, também abre a possibilidade de exportação do excedente para mercados deficitários. Além disso, mecanismos de tarifas dinâmicas poderiam incentivar o consumo em horários de sobra, barateando a energia para o consumidor final nesses períodos.

Paralelamente, o Brasil pode atrair indústrias eletrointensivas — como data centers, siderurgia verde e projetos de dessalinização — para aproveitar esse excedente. O Nordeste, em especial a cidade de Caucaia, já se destaca como polo atrativo nesse cenário. Soma-se a isso o incentivo à digitalização e à inteligência artificial na gestão pública e privada, com uso de tecnologias preditivas capazes de ajustar geração e consumo em tempo real.

Esse esforço para estabilizar o sistema deve estar inserido em um programa mais amplo de inovação e de estímulo a projetos de pesquisa e desenvolvimento em armazenamento, hidrogênio e flexibilidade da demanda. O Direito, por sua vez, tem papel decisivo ao modernizar o marco regulatório, criando instrumentos que permitam a consumidores e geradores compartilhar os benefícios do excedente.

O excesso de energia, portanto, não deve ser encarado apenas como um problema, mas como uma oportunidade histórica. Diferentemente do café queimado, hoje dispomos de ferramentas capazes de transformar sobra em vantagem competitiva. A chave está em planejar o sistema de forma inteligente, integrando novas tecnologias, cadeias produtivas e políticas públicas que consolidem o Brasil como potência energética sustentável. Assim como o café moldou a economia no passado, a energia pode ser o motor de um novo ciclo de desenvolvimento — desde que o desperdício se converta em inovação.

*Machidovel Trigueiro Filho

Vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenador do Centro de Referência em Inteligência Artificial da UFC (CRIA), coordenador da Comissão de Data Centers e Cidades Inteligentes da OAB-CE, pós-doutor pela USP, professor visitante na FIU/EUA, professor pesquisador em Stanford/EUA e eleito “Empreendedor Digital do Ano no Brasil” pela
Associação Brasileira de Startups e pela Startup Brasil.

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