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“Uma batalha neoplásica”

Rafael Fonsêca, neurocirurgião. Foto: Arquivo Pessoal

Com o título “Uma batalha neoplásica”, eis um outro talento de Rafael Fonsêca de Queiroz, neurocirurgião titular pela SBN e chefe do serviço de Neurocirurgia do Hospital Regional do Sertão Central/SESA. “Neste cenário bucólico, onde a vida floresce com tenacidade, o hospital no sertão do Ceará emerge como um farol de cuidado e esperança. É um testemunho vivo da resiliência humana e da dedicação à saúde, representando um ponto de equilíbrio vital em um ambiente desafiador”,expõe o médico nessa crônica.

Confira:

O sol estava começando a despontar no horizonte, iluminando a fachada do hospital com seus raios suaves. Era mais um dia de trabalho para mim. O edifício, um prédio imponente, com sua arquitetura moderna de concreto e vidro, linhas retas e geométricas, em contraste à aridez de terrenos isolados pela estiagem em sua volta. Era o paradoxo perfeito. As árvores que o cercavam traziam vida aquele gigante de concreto.

O jardim, um microcosmo de complexidade paradoxal, uma grande sinfonia de elementos naturais meticulosamente organizados em um contraponto harmonioso com a imponência do concreto que abraça o edifício hospitalar. À primeira vista, pode parecer apenas um cenário pitoresco, mas a observação atenta revela uma profunda interação entre a ciência, a natureza e a estética.

O mandacaru, com seus braços altos e espinhos imponentes, é um ícone do sertão. Suas flores noturnas desabrocham em tons suaves de branco, contrastando com o verde intenso de seu corpo. Adaptado para armazenar água em seu caule, o mandacaru permanece como uma testemunha resistente dos dias escaldantes. A aroeira, com sua folhagem verde-escura e pequenas bagas vermelhas, adiciona uma pitada de rusticidade e uma dimensão etérea ao jardim. Resistente, é conhecida por suas propriedades medicinais e um grande símbolo da biodiversidade resiliente do sertão.

Ao entrar no elevador, me deparo com uma jovem moça que, pelos seus trajes, presumo ser uma estudante. Ela parece nervosa, talvez indo para sua primeira cirurgia. Seus olhos castanhos expressam a ansiedade, mas ainda assim, vejo neles uma determinação e vontade de aprender. Digo “bom dia” e sorrio para ela, tentando transmitir calma e confiança.

Chegando ao andar das cirurgias, cumprimento minha equipe de enfermeiros e médicos. Observo que um dos enfermeiros parece cansado, mas ainda assim, mantém a postura e foco no trabalho. Outra enfermeira é mais jovem, tem cabelos ruivos e um sorriso amigável. E por fim, minha instrumentadora, uma mulher brevilínea, mas muito elegante, que está sempre com uma expressão séria, porém sempre pronta para ajudar.

Ao entrarmos na sala de cirurgia, sinto o ar frio do ambiente e o cheiro de desinfetante. A sala é ampla, com paredes brancas e uma luz intensa que ilumina a mesa de operação. As máquinas, monitores e equipamentos parecem um tanto intimidantes, mas para nós, são ferramentas essenciais para salvar vidas.

Antes da cirurgia, minha atenção está totalmente voltada para o paciente. Observo sua fisionomia, o formato do rosto, os detalhes das expressões faciais que indicam seus sinais mais vitais e suas emoções. Seu corpo é um grande quebra-cabeças para mim, um enigma que eu preciso solucionar para encontrar o melhor caminho para salvar sua vida.

Fecho os olhos, visualizo cada passo do procedimento como se fosse uma grande viagem em que a gente escolhe todos os itinerários a serem tomados. Ao fundo, o som da opera 9 de número 2 do grande mestre chopin: Nocturne. Sempre inicio a batalha com ela ao fundo; é uma joia musical que transcende as barreiras do tempo, cativando os ouvintes com sua beleza melancólica e poesia melódica. Composta em Si menor, esta obra é uma expressão sublime do talento singular de Chopin em capturar as emoções mais complexas e profundas do espírito humano.

Ao abrir a primeira incisão, era como se eu estivesse desbravando uma fronteira desconhecida, uma zona de conflito onde cada milímetro conquistado significava progresso na batalha. O escalpelamento cuidadoso, diferente dos rituais américo- indígenas, era a abertura das hostilidades perante o sórdido êmulo, uma estratégia meticulosa para desafiar o invasor que se escondia nas dobras do tecido cerebral. A luz cirúrgica era meu feixe de esperança, um farol no campo de batalha, enquanto eu mergulhava mais fundo, explorando os territórios do cérebro onde as sinapses cintilavam como as estrelas da pintura mais famosa de Van Gogh.

O tumor, um general astuto, tentava esquivar-se, mas eu persistia, empurrando todos os limites da resistência tecidual.

Cada fragmento do tumor removido era uma vitória, uma conquista ganha após uma batalha feroz. O sangue, líquido vital derramado no campo, era um lembrete constante da fragilidade da vida, um tributo aos sacrifícios necessários para a libertação da matéria mais elaborada do universo que jazia oprimida.

No calor da batalha, a tecnologia tornava-se minha espiã, alertando-me sobre as investidas do inimigo antes mesmo que eu pudesse perceber. Cada devaneio elétrico, uma mensagem codificada na linguagem do sistema nervoso, guiava-me pela selva cerebral, revelando os esconderijos do tumor.

A aspiração do tumor era como a captura de um território estratégico, retirando do campo inimigo uma parte de seu poder de fogo. Eu liderava minhas tropas através das trincheiras subaracnoídeas, enfrentando a resistência do tecido neural, enquanto o tumor recuava diante da investida.

No final, após o último pedaço do tumor trasladado, a sala cirúrgica tornou-se um campo de paz conquistado após uma guerra árdua. É como se uma tempestade tivesse finalmente passado, e o céu antes nublado começasse a se abrir para raios de luz. A poeira da batalha assenta, e uma calmaria reconfortante toma conta do ambiente. O cheiro do ar pós-guerra sempre é marcado pela esperança, misturada com o eco das memórias do conflito. O fechamento da incisão era a bandeira hasteada no território agora livre. O paciente, o sobrevivente desta batalha, era testemunha do triunfo sobre um inimigo tão íntimo e implacável.

Ao final, volto ao meu escritório para descansar um pouco antes de encarar novos desafios. Observo pela janela a cidade que se estende ao meu redor. o cenário é pintado em tons terrosos e cinza, com a vegetação rasteira exibindo sua resistência à seca persistente. O chão de terra batida, marcado por sangue e suor, testemunha a luta constante da natureza contra a escassez de água.

Neste cenário bucólico, onde a vida floresce com tenacidade, o hospital no sertão do Ceará emerge como um farol de cuidado e esperança. É um testemunho vivo da resiliência humana e da dedicação à saúde, representando um ponto de equilíbrio vital em um ambiente desafiador.

Enquanto penso em todas essas coisas, me lembro de que, como neurocirurgião, preciso estar sempre atento aos detalhes. Cada pessoa, cada caso, cada edifício, cada paisagem, tudo tem sua própria história e nuances. É nesses detalhes que encontramos a beleza da vida e o desafio de superar obstáculos.

É nesse desafio que encontro a satisfação e a realização de ser um neurocirurgião. Lembro-me então da teoria do eterno retorno de Nietzsche, que em seu livro mais icônico: “assim falou Zaratustra” afirma que a vida poderia ser um ciclo interminável e que tudo o que fazemos poderia ser repetido infinitamente. Não me importo. Sei que, enquanto estiver ao lado dessas pessoas, cuidando e ajudando-as, estarei vivendo a felicidade de ter uma profissão com o poder de transformar a vida de outras pessoas para melhor.

*Rafael Fonsêca de Queiroz

Neurocirurgião titular pela SBN e chefe do serviço de Neurocirurgia do Hospital Regional do Sertão Central/SESA
E-mail: rafaelfq5587@gmail.com

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Respostas de 2

  1. Dr. Rafael, sua destreza na neurocirurgia é motivo de grande alegria, trazendo esperança e saúde à comunidade cearense.

  2. Rafael, meu querido sobrinho, que texto maaaaraaavilhoso e lindo!!!!! Quanta sensibilidade, poesia, conhecimento científico, respeito ao paciente, respeito ambiental, conhecimento literário…..enfim, um primor!!!!!
    Emocionante mesmo!!!!! Não conhecia esse seu lado poético. Um abraço com muito carinho.

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