“Com um cenário lamentável desse, como olhar para essas crianças e desejar-lhes feliz Natal?”, aponta a jornalista Denise Assis
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Quando Maria chegou em casa e contou para José, o carpinteiro seu marido – um homem simples, portanto -, que o Anjo Gabriel havia lhe dito que ela teria um filho e ele não era o pai, José poderia ter virado a mão na cara dela, voado sobre o seu corpo e desfechado sobre ele uma séria de facadas, ao som de xingamentos do tipo: “vagabunda” e outros tantos. Talvez tivesse perfurado o seu ventre e atingido Jesus, que não teria nascido para nos salvar. Como consequência, o mundo não teria se dividido entre católicos e evangélicos de vários matizes, que hoje o adoram e pregam de tudo em seu nome. Até a violência.
Sem Jesus, não haveria Malafaias e Sóstenes e, quem sabe, seus armários abarrotados de 430 mil dinheiros. Tampouco se discutiria hoje a laicidade do Estado. A política não estaria infestada de “cristãos” e o presidente Lula não teria necessidade de sair em busca de agradá-los elevando a música Gospel à condição de patrimônio Nacional, a despeito dos que correm desse gênero musical.
José teria praticado um dos primeiros feminicídios da humanidade, que haveria de já estar computando esse tipo de crime na casa dos trilhões, se estatísticas houvesse. Mas não. O que o marido de Maria fez foi arrumar um burrico, colocá-la no lombo e num gesto magnânimo ceder o único meio de transporte possível, na fuga desesperada pelo deserto, protegendo a ela e seu filho da fúria de Herodes, o assassino de bebês que ameaçavam o seu trono, posto que ele não sabia qual deles seria o anunciado “rei dos reis”. A ordem era decapitá-los sem dó.
Assim, José teve o filho que não fez, Maria foi a mãe que Gabriel anunciou e Jesus cumpriu a sua sina, imposta pelo pai, de morrer pela humanidade.
Chegando aos dias de hoje, como consequência, sim, a gente tem o Malafaia, o Sóstenes, o Marco Feliciano, mas temos também o padre Júlio Lancelotti, que segue os seus ensinamentos, longe da política.
Tivesse José sido usado como exemplo para os demais homens, e não teríamos os números assustadores divulgados pelo ministério da Justiça recentemente: só o Brasil registra quatro feminicídios, sete homicídios, 196 meninas e mulheres vítimas de estupro a cada dia, mesmo sendo a população feminina superior à dos homens.
Os resultados do último Censo Demográfico, o de 2022, apontam que o Brasil tem 6,0 milhões de mulheres a mais do que homens. A população brasileira é composta por cerca de 104,5 milhões de mulheres e 98,5 milhões de homens, o que, respectivamente, corresponde a 51,5% e 48,5% da população residente no país. E o número de homens em relação ao de mulheres vem decrescendo ao longo do tempo. Para cada grupo de 100 mulheres, por exemplo, havia 98,7 homens em 1980; 96,0 em 2010; e 94,2 em 2022. Imaginem se elas resolvessem revidar…
Mas as mulheres não são dessas. Não há tempo para a violência, quando nos últimos anos, segundo uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, feita pela estudiosa do tema, Janaína Feijó, publicada em agosto deste ano que finda, o Brasil tem tido mais mulheres do que homens como chefes de família. O resultado tomou por base estudos do IBGE onde consta que hoje são mais de 41 milhões de domicílios que têm mulheres como principais provedoras, número que reflete não apenas autonomia, mas também uma série de desafios.
E agora, a mudança que mais incomoda aos homens: a educação feminina, que aumentou o poder de barganha das mulheres, mudanças econômicas e programas sociais que as colocam como ponto focal. Sim, elas estão muito mais independentes do que Maria, que dependeu da bondade e da compreensão de José, seu bom marido, naquele tempo o provedor.
José permitiu que Jesus nascesse numa manjedoura, sem o conforto de hospitais e planos de saúde. Plano, mesmo, só o de que morreria no auge da juventude, depois de preso e torturado, de acordo com os desígnios do pai.
Maria sobreviveu ao filho, ao contrário do quadro lamentável que se vê hoje no país, onde o feminicídio virou “epidemia”. Assim, nesse Natal, no Brasil, de acordo com levantamento do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem), da Universidade Estadual de Londrina, só no primeiro semestre deste ano que finda, 683 crianças ficaram órfãs de mãe pelas mãos dos pais ou padrastos, numa média de quatro por dia. O órgão contabiliza 950 vítimas de feminicídio no país entre janeiro e junho.
Com um cenário lamentável desse, como olhar para essas crianças e desejar-lhes feliz Natal? Felicidade, para elas, certamente, seria ter a mãe participando da ceia ou do almoço do dia 25. Mataram suas mães. E os pais, os que estão presos ou soltos, para elas foram ressignificados. O que dizer a essas crianças?
Denise Assis é jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de “Propaganda e cinema a serviço do golpe – 1962/1964” , “Imaculada” e “Claudio Guerra: Matar e Queimar”