Com o título “Parlamento: a casa da elite”, eis artigo de Dalton Rosado, advogado e escritor que participou da criação do PT em Fortaleza (1981), e foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da Arquidiocese de Fortaleza. Ele aborda o cenário político nacional e, em especial, o Parlamento brasileiro.
Confira:
Costuma-se dizer que o parlamento é a casa do povo. Tal denominação, que jamais foi assim entendida e considerada pelo povo, mas definida de modo astucioso pela constituição republicana, corresponde ao mais ignominioso embuste da democracia burguesa.
Nunca, nem mesmo no início da revolução da Rússia de 1917, o parlamento russo denominado como Duma, liderado inicialmente pelos mencheviques, teve representação que demonstrasse a equidade de participação das classes sociais. Foi necessário que Lenin, nas famosas teses de abril, denunciasse o seu caráter reformista burguês, apelando para que o poder legislativo fosse diretamente exercido pelos Conselhos Populares, formado por trabalhadores e revolucionários, também conhecido como sovietes.
Uma lástima que desde a NEP – Nova Política Econômica – que admitiu concessões de práticas burguesas como forma de adaptação inicial à implementação do capitalismo de Estado posterior, pós-revolucionária e proposta por Lenin, tenha provocado a continuidade de relações mercantis cada vez mais praticadas depois de sua morte precoce.
Hoje a Rússia é o paraíso dos empresários bilionários (de lá e de fora) que adquiriram as estatais, e se tornou um país de governo militarista autocrata praticante de um capitalismo decadente. O capitalismo não perdoa: ajoelhou, tem que rezar, como dizia o velho Guerreiro, o Chacrinha.
O parlamento é a casa das elites, que é onde se formulam leis em nome do povo e contra ele, e de modo que se estabeleça a obediência isonômica por todos a estas regras feitas dentro do interesse do capital, algo assim como se um jogo entre Real Madrid com o Ibis, de Pernambuco, tivesse paridade de armas por jogarem sob regras iguais.
No Brasil, portanto, não poderia ser diferente, fato que denuncia o caráter antidemocrático da democracia (tomando-se por termo o significado semântico que a palavra adquiriu sub-repticiamente). É por isso, entre outras razões, que nego meu voto, como protesto, e sem medo de ser feliz, e sem medo da direita.
As eleições Parlamentares brasileiras de 2022 aprofundaram a tradicional predominância elitista de classes sociais no parlamento, e isto tem se transformado num tormento dentro do quadro de dificuldades de depressão capitalista mundo afora ao qual o Brasil não pode ficar imune, obviamente.
Vejamos a composição das cadeiras na Câmara Federal, por partidos:
Partido Liberal ………………………………………………. 92;
Partido dos Trabalhadores ………………………………….. 68;
Partido União…………………………………………………. 58;
PP – Partido Progressista ……………………………………. 51;
MDB – Movimento Democrático Brasileiro….. 44;
Partido Republicano………………………………………….. 44;
PSD – Partido Social Democrático………………….. 44;
PDT – Partido Democrático Trabalhista …………. 18;
PSDB – e Cidadania……………………………….. 17;
Partido Podemos………………………………………………. 15;
Partido Socialista Brasileiro ………………………………….. 14;
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade …………….. 13;
Partido Avante ………………………………………………… 7;
PC do B – Partido Comunista do Brasil………………. 7
PRD – Partido Renovação Democrática ….. 5;
Partido Solidariedade ………………………………………… 5;
Partido Verde………………………………………………….. 5;
Partido Novo ………………………………………………….. 4;
Partido da Rede Solidariedade ……………………. 1;
Sem partido …………………………………………………… 1;
Total de cadeiras ……………………………………………… 513
Como se vê, há uma hegemonia de poder conservador elitista configurado nas 326 cadeiras de partidos de direita, que equivalem a 63,5%; 61 partidos de centro, que equivalem a 11,8%, e 126 partidos de esquerda, que equivalem a 24,5% do total de cadeiras.
Aí está a razão pela qual no Brasil a direita, ao perder o controle do executivo, tenta reforçar o poder político do parlamento como forma de submeter as verbas orçamentárias discricionárias ao seu controle. Assim, o Congresso Nacional concede a ele mesmo o poder de derrubar decisões do Supremo Tribunal Federal, ou seja, de eliminar do Poder Judiciário qualquer análise de descumprimento constitucional pelo parlamento.
Além de tentar aprovar (e aprovar) leis absurdas como podemos citar a título de exemplos resumidos mais recentes:
– Lei da privatização das praias;
– criação e conservação da lei das desonerações fiscais previdenciárias das folhas de pagamento das empresas de 17 setores de grande empregabilidade, que abrange centenas de grandes empresas (substituiu a anterior CPP – Contribuição Previdenciária Patronal), e reduziu o pagamento de 20% sobre pagamentos de salários para 1% a 4,5% sobre a renda bruta de empreendimento (volume bem menor em valores), a título de isenção fiscal empresarial previdenciária, fato que dificulta ainda mais as deficitárias contas previdenciárias e suas baixas pensões aos beneficiários (após uma grita geral contra tal benefício se formou o consenso de isenção total em 2024 e retomada gradual até 2027);
– de liberação de áreas de proteção ambiental para o agronegócio;
– análise e registro de agrotóxicos pelo Ministério da Agricultura tirando tal função do Ibama e da Anvisa, órgãos especializados (PL 6288/20);
– leilão de bens fora da esfera judicial, e que permite a ação administrativa para pagamento de dívida até de bens de família (PL 4188/21);
– de constituir o parlamento como uma custosa rubrica orçamentária institucional em salários altamente discrepantes da realidade salarial dos trabalhadores e mordomias injustificáveis, tudo às custas da empobrecida bolsa popular que tudo sustenta através dos impostos que lhe são cobrados;
– – verba de R$ 4,9 bilhões para o fundo partidário das eleições e o perdão das multas partidárias;
Isso tudo sem se falar nas tradicionais “rachadinhas” (apropriação parcial dos salários de assessores por eles nomeados) e das comissões cobradas aos Prefeitos nas obras superfaturadas resultantes das emendas parlamentares.
O capitalismo é isso, a autotélica lógica de apropriação indébita da riqueza abstrata socialmente produzida (e que remunera seus agentes mais proeminentes, o grande empresariado) no seu desiderato de acumulação ad infinitum. Ora, se é assim, como poderia o parlamento ter natureza diferente da que tem, se sua função precípua é a elaboração de leis voltadas para a regulamentação e manutenção desse modo de relação social enquanto instituição do Estado burguês???
Há quem argumente, e com boas intenções, que os anticapitalistas de esquerda devem participar do parlamento como forma de se colocar uma cunha no conservadorismo parlamentar de sempre, e fazer proposições que estabelecem a diferença entre estes e aqueles; e este é um argumento que embute uma meia verdade que costuma ser um equívoco completo.
Na verdade, ao participar de uma instituição que tem caráter burguês, e é eleita com o voto manipulado pelo poder político e econômico nos grotões mais distantes do centro de comando, e que sempre lhe concede maioria, os parlamentares de pretensa oposição sistêmica legitimam o jogo burguês parlamentar que se sabe de antemão vencido pelos seus adversários de classe.
Uma vez investido como parte da casa, não podem denunciar o caráter parlamentar, porque se assim o fizessem estariam ofendendo o famoso “decoro parlamentar de salão” e, também, porque não se pode denunciar a prostituição dentro de um prostíbulo, se me permitem o exagero. Além do mais, os salários e verbas partidárias sustentam muita gente que por dependência econômica beija a mão de quem segura o chicote.
São muitas as contradições que nos transformam em gado no corredor do matadouro. A primeira delas é a aceitação do trabalho abstrato, que se constitui como o artífice de todo o edifício capitalista e da forma-valor; nossa presença no parlamento é apenas mais uma delas.
Os sindicatos, por exemplo, ao invés de clamar por mais empregos e salários, deveriam clamar pelo fim destas duas categorias capitalistas, e este é mais um comportamento dentro do espectro de boas e infrutíferas intenções.
A luta política dentro da imanência capitalista sempre naufraga no vazio da sua inconsistência.
Abaixo a casa das elites!
*Dalton Rosado
Advogado e escritor, participou da criação do PT em Fortaleza (1981) e foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da Arquidiocese de Fortaleza.