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“O primeiro Valisére”

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política

“A memória desempenha um papel crucial para a sobrevivência humana”, eis título de artigo do cientista político Alexandre Aragão de Albuquerque

Confira:

No dia 13 de outubro de 2024, o mercado publicitário mundial perdeu uma de suas genialidades. Falecido aos 73 anos de idade, Washington Olivetto, natural do bairro da Lapa, cidade de São Paulo, deixou um legado incomparável, marcado pela inteligência, criatividade e qualidade artística das campanhas com sua assinatura, transformando o cenário da publicidade por meio de sua abordagem inovadora e habilidade, criando histórias que capturaram a essência da vida cotidiana, as quais transcendem o tempo, permanecendo vivas na memória de quem as assistiu e contemplou.

No início da década de 1980, Olivetto, corintiano de coração, ocupou a vice-presidência de marketing daquele clube. Em 1982 promoveu um debate no TUCA, teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), palco histórico de resistência cultural e política, com a participação dos jogadores Sócrates, Wladimir, Casagrande, sob a mediação do jornalista Juca Kfouri, cujo fruto foi o nascimento da Democracia Corintiana, movimento inovador no ambiente desportivo, cujas decisões eram tomadas como resultado da votação igualitária entre os profissionais daquela agremiação.

Em 1987, Olivetto criou o seu comercial mais penetrante e famoso, sem usar palavras, apenas cenas visuais do cotidiano e um fundo musical de excelência. O filme aborda o rito de passagem feminino, de forma delicada, sensual e inesquecível, contando a história de uma jovem adolescente que ganha de presente o seu primeiro sutiã. A frase final, “O primeiro Valisére a gente nunca esquece”, é memorável, repleta de sinceridade e simplicidade emocionantes. Um tema íntimo tratado com leveza, respeito e beleza.

A memória desempenha um papel crucial para a sobrevivência humana. Recordar, ou seja, meditar com o coração experiências passadas, ajuda-nos a caminhar melhor, aprendendo com os erros, revitalizando-nos com os acertos, corrigindo e aprimorando comportamentos que nos levem a tomadas de decisão mais acertadas em relação ao futuro.

Certos eventos provocam reações emocionais marcantes como o medo, a violência, a tristeza, a alegria, a decepção. As emoções tendem a ser mais memoráveis pois atuam como marcadores, reforçando a retenção de memórias específicas.

Além disso, cada vez que rememoramos um evento, essa memória passa a ser mais reconsolidada, podendo reforçar sua permanência no cérebro, tornando-a mais resistente ao esquecimento. E isto também ocorre de forma coletiva à medida que tais recordações aconteçam como rememoração social de uma determinada comunidade política.

Memórias que são frequentemente revisitadas ou praticadas tendem a ser muito mais duradouras. São armazenadas mediante complexas redes neurais. Quanto mais conexões uma memória tem com outras informações e experiências, mais fácil será recordá-la.

Uma memória compartilhada fortalece os laços entre os membros de uma comunidade, promovendo um senso de pertencimento e solidariedade.

Celebrar eventos históricos, especialmente aqueles de resistência e luta, inspira e motiva antigas e novas gerações a defender suas conquistas de direitos, inspirando-as a enfrentar sem temor os desafios do tempo presente. A memória de um povo é fundamental para a construção de sua identidade, fazendo que compreendam suas raízes com sua evolução histórica na construção de uma comunidade justa, de cidadãos livres e iguais num espaço de instituições sólidas.

No dia 19 de novembro um novo importante capítulo da história brasileira começou a ser escrito. Trata-se da decretação da prisão preventiva de quatro militares de alta patente do Exército, além de um policial federal, acusados de planejar e colocar em execução um plano de assassinato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Vice Geraldo Alckmin e do Ministro do STF Alexandre de Moraes. Ato contínuo, a Polícia Federal concluiu o inquérito de dois anos de investigação do ato terrorista de 8 de janeiro de 2023, indiciando 37 pessoas entre as quais Braga Netto, Augusto Heleno, Alexandre Ramagem, Anderson Torres e Jair Bolsonaro, considerado o “comandante dessa organização”, conforme declaração do advogado do tenente-coronel Mauro Cid, Cezar Bitencourt, à jornalista Andréia Sadi, da Globo News.

Apesar de ser um importante capítulo em andamento, precisamos não olvidar o livro no qual ele está sendo escrito, com seus capítulos anteriores. O planejamento de um violento Golpe de Estado, com ares de crueldade, a partir de uma organização criminosa e terrorista de cunho militar, não surge do nada. Há memória histórica passada, violenta e autoritária, a incentivar essa gentalha a agir.

Portanto, é preciso manter bem vivo em nossa memória o livro de nossa história recente como um todo, relembrando as circunstâncias e os atores passados que alicerçaram o “ethos golpista” em nosso presente recente: lideranças religiosas, profissionais e veículos de comunicação, juízes e procuradores, empresários, políticos e militares, todos compondo um grande concerto vigarista de complô contra a nossa Democracia.

Por fim, importante destacar do Relatório Final, entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF), o apontamento da Polícia Federal comprovando a existência de 6 (seis) núcleos articulados para a derrubada violenta do nosso Estado Democrático de Direito.

Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral: responsável pela disseminação de mentiras sobre as urnas eletrônicas para descredibilizar o processo eleitoral.Núcleo Responsável por Incitar Militares: elegia alvos para ampliar os ataques pessoais contra militares em posição de comando que resistiam às ações golpistas.Núcleo Jurídico: fazia assessoramento e elaboração de Minutas de decretos com argumentos jurídicos e doutrinários que atendessem aos interesses autoritários golpistas. Elaborou, por exemplo, Atos Institucionais contrários à Constituição, como a proposta encontrada na residência de Anderson Torres.Núcleo Operacional de Apoio: executava medidas para manter as manifestações em frente aos quartéis que se formaram após o resultado das eleições, incluindo mobilização, logística e financiamento dos kids pretos em Brasília.Núcleo de Inteligência Paralela: coletava dados e informações que pudessem auxiliar a tomada de posições sobre o golpe de Estado e monitorava o deslocamento e localização do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice Geraldo Alckmin.

Eis o evento novo! A Democracia reagindo com altivez diante da ameaça golpista militar. Tal acontecimento deve ser levado a cabo, concluído com todas as punições necessárias para tornar-se memória nacional, a ser celebrada de forma compartilhada pelas gerações presentes e futuras. E como o primeiro Valisére, jamais ser esquecido.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará.

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