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“Agnosis”

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política

“A ignorância não é apenas um estado passivo, mas uma construção ativa a ser utilizada para servir interesses do poder político e econômico”, aponta o cientista político Alexandre Aragão de Albuquerque

Confira:

“Toda palavra possui espírito”. (Kaka Werá Jecupé).

“Assim é a palavra. Ela cria, enfeitiça, embriaga, gera monstros, faz heróis, remete-nos para a nossa própria memória ancestral e dá sentido ao nosso estar no mundo. Mesmo vivendo numa época em que a tecnologia impera, colocando a Palavra (Verdade) em segundo plano, percebemos que ainda há sinais de esperança, pois ela vivifica a poesia dos mistérios que nos emocionam e nos fazem buscar, dentro de nós mesmos, a certeza de que vale a pena colorir o mundo”. (Daniel Munduruku).

Por ser finito o nosso pensamento não consegue alcançar o infinito. Além disso, é limitado ao pensar a finitude, o mundo. Tudo o que conhecemos está sujeito a esta limitação. Conhecer é simultaneamente reconhecer esta ignorância. Ignorar, do verbo latino ignorare, significa “não saber”, “não ter conhecimento de”. Mas, dialeticamente, um dos significados atribuídos à palavra latina ignorantia seria o de “vontade de saber”, “desejo de adquirir conhecimento”. (KLEIN, Ernest. A comprehensive etymological dictionary of english langauge. Amsterdam: Elsevier, 1966).Há assim dois tipos de ignorância: a ignorância ignorante, que não sabe sequer que ignora, e a ignorância douta [formulação atribuída ao filósofo alemão Nicolau de Cusa (1401-1464)], que sabe que ignora e o que ignora. Ignorar de forma douta exige um processo de conhecimento laborioso sobre as limitações do que sabemos. Perante a infinitude, não é possível a arrogância, mas tão somente a humildade. Reconhecer os próprios limites é de alguma forma estar para além deles. O fato de não ser possível atingir a verdade com precisão não nos dispensa de buscá-la. A verdade existe como busca da verdade. (Boaventura de Sousa Santos. https://doi.org/10.4000/rccs.691, p-11-43).

No tempo presente, a dialética finitude/infinitude decorre da inesgotável diversidade da experiência humana e dos limites para conhecê-la. Da diversidade da experiência humana faz parte uma pluralidade de saberes finitos sobre a experiência humana no mundo. O saber que ignora é o saber que ignora os outros saberes que com ele partilham a diversidade epistemológica do mundo. O pensamento único – hegemônico e autoritário – mais do que não conhecer os outros saberes, recusa-se a reconhecer sequer que eles existam. (Santos, idem).

Há, portanto, uma grande tensão entre o saber ecológico (douta ignorância), aquele que está comprometido com o diálogo entre a pluralidade dos saberes, e o saber autoritário (ignorância ignorante) que busca impor-se sobre todos os outros saberes. O que está em jogo nesta disputa é a vida na terra, a possibilidade da continuação da existência do mundo que se vê ameaçada pela arrogância do saber opressor, concentrador de renda e das riquezas produzidas socialmente, fautor da fome e das desigualdades sociais, depredador dos bens naturais e incentivador de agressões bélicas para solução de conflitos.

Neste cenário, um conhecimento está em pleno desenvolvimento, a Agnotologia. Ele se alicerça em uma noção poderosa: a ignorância não é apenas um estado passivo, mas uma construção ativa a ser utilizada para servir interesses do poder político e econômico. De forma mais específica, a Agnotologia seria um campo multi, trans e interdisciplinar que estuda a ignorância culturalmente produzida, especialmente a ignorância criada pela publicação de dados científicos enganosos ou imprecisos. (Robert Proctor. Cancer Wars. New York: Basic Books, 1995).

Por sua natureza mutável, grãos de areia soprados do barlavento ao sotavento promovem o deslocamento da montanha de areia, tal como uma duna, formando na mente humana ilusões imagéticas novas, ou como uma miragem de um oásis situado no deserto, que se revela quando uma pessoa sedenta dele se aproxima, configurando uma mera ilusão de ótica.

Ilusões também ocorrem com as palavras e símbolos, de acordo com os contextos, formatos e intencionalidades com as quais são produzidos. Assim como acontece com as paisagens compostas por dunas inconstantes em uma zona litorânea, ou por miragens de oásis em uma região desértica, a realidade discursiva proporciona outros tipos de engano, como os que são proporcionados pela manipulação ideológica do discurso. (OLIVEIRA, Thiago Pires. Tese de Doutorado em Participação Política. USP, 2023: https://doi.org/10.11606/T.100.2023.tde-03042023-142916).

Acontecimentos retrógrados foram verificados ao longo da história por donos do poder, no sentido de não permitir o acesso dos povos ao conhecimento, por meio de aniquilamento de acervos de livros, de documentos e até de pessoas responsáveis pela produção de saberes.

Dois casos célebres de cientistas censurados por suas ideias foram Giordano Bruno (1548-1600), queimado vivo na fogueira no Campo das Flores, em 17 de fevereiro de 1600, condenado pelo Papa Clemente VIII; e Galileu Galilei (1564-1642) que, apesar de não ter sido condenado à morte, acabou sendo silenciado efetivamente pela Igreja Católica.

Há também os incêndios destruidores da Biblioteca de Alexandria, os incêndios das bibliotecas reais do Império Maia pelos colonizadores espanhóis, além das fogueiras de livros promovidas pelos nazistas, no século XX, em mais de 20 cidades alemãs.

Sobre a Agnotologia, o cientista social brasileiro Dr. Thiago P. Oliveira, em estudo citado acima, elenca dois eixos para uma melhor compreensão do conceito ignorância: eixo comunicacional da ignorância e o eixo epistemológico da ignorância.

No eixo comunicacional, ao qual nos dedicaremos brevemente neste artigo por razões de espaço editorial, Oliveira destaca três práticas sociais veiculadoras de enunciados que contribuem para a instrumentalização da ignorância no domínio dos processos de transmissão de informação.

Trata-se de um sistema conceitual composto por práticas sociais discursivas visando disseminar, deliberadamente, percepções distorcidas, dúvidas e incertezas sobre os acontecimentos: os boatos [distorções, fofocas, maledicências, difamações]; as desordens informacionais [informação incorreta, desinformação e má informação]; e as notícias fraudulentas [fake news].A palavra boato deriva do vocábulo latino “boatus” cujo significado original é “mugido forte”. Os boatos são uma ferramenta de instrumentalização social e política da ignorância por meio da qual em um dado sistema social e político a verdade é frequentemente mistificada, ocultada ou manipulada, mediante conteúdos incertos quanto à sua veracidade ou falsidade. Por exemplo, quando se reproduziu no Brasil, pela voz cínica do então presidente da república, Jair Bolsonaro, que as pessoas que tomassem vacinas contra a covid-19 poderiam se transformar num jacaré.A desordem informacional é um fenômeno complexo e desafiador que se tem intensificado com a abertura das plataformas de redes sociais, algumas delas com agentes resguardados pelo anonimato. A desinformação é informação falsa, criada deliberadamente para prejudicar uma pessoa, grupo social, organização política ou país. Utiliza-se de práticas como discursos de ódio, vazamento de dados, mensagens direcionadas como práticas de assédio.Promove a disfuncionalidade informacional, com aptidão de serem manipuladas para fins de promoção da ignorância, agregando falsidade com intenção de dano. Por exemplo, todo o processo de construção do impeachment ilegítimo e ilegal contra a presidente Dilma Rousseff, como também a perseguição lawfare contra o presidente Lula, promovido por Dallagnol e Moro, baseada não em provas contundentes, mas em convicções e projetos políticos pessoais, que resultou na prisão, em Curitiba- PR, do presidente Lula por 580 dias.Por fim, notícia fraudulenta [fake news] seria um tópico específico da desordem informacional, porque mescla informação incorreta com desinformação deliberada, com forte potencial de enganar o público-alvo para o qual é dirigida, por ser uma mensagem com aparente formato de notícia, com forte aptidão para enganar outrem, constando de elementos de intencionalidade e falsidade comprovadas, criada como desinformação deliberada para parecer notícia real a fim de obter efeitos políticos, como ocorreu nas eleições presidenciais brasileiras de 2018.

As redes sociais e a rede mundial de computadores são espaços nos quais as notícias fraudulentas gozam de tratamento privilegiado no processo de combate à verdade. São espaços utilizados para a disseminação da ignorância, com forte potencial de serem utilizadas como máquinas de guerra, como no caso das guerras híbridas.

É preciso desenvolver coletivamente processos de fortalecimento do senso crítico da população, de forma continuada, porque a produção da ignorância é parte integrante do sistema de dominação política.

Sintomática a manifestação recente de autoridades do legislativo federal ao buscar confundir a população, quando afirmam que o conjunto das ações orquestradas nos meses de novembro e dezembro de 2022, composto pelos acampamentos nos quartéis, ataques à sede da Polícia Federal em Brasília, tentativa de explosão do aeroporto de Brasília, que culminaram com a depredação das sedes dos Três Poderes em 08 de janeiro de 2023, com a participação das forças especiais denominadas de Kids Pretos, não caracterizar uma tentativa de golpe de estado.

Tal desinformação deliberada, confundindo o objetivo arquitetado com o resultado fracassado, manipulada abertamente por estas autoridades e pelas forças que as sustentam, tem escopo político bem definido: reconduzir a extrema-direita ao poder executivo central em 2026.

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)

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