Com o título “Nova Reforma da Lei de Falênicas”, eis artigo de Ernani Barreira, desembargador aposentado do Estado do Ceará. Ele aborda tema bem atual e que muito interessa ao mercado.
Confira:
A Câmara de Deputados recepcionou, em 10 de janeiro de 2024, o Projeto de Lei (PL) nº 3/2024, por meio do qual o Poder Executivo propõe alteração na Lei nº 11.101, de 09.02.2005, para
aprimorar o instituto da falência do empresário e da sociedade empresária. Busca-se com o PL tornar o processo de falência mais célere e eficaz, diz o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, em sua Mensagem nº 00161/2023 MF, de 07.12.2023. O objetivo é a ampliação da taxa de recuperação de créditos e a mitigação dos riscos de perdas a todos os envolvidos. Os ativos produtivos devem ser realocados ao seu melhor uso.
No Brasil, o processo de falência é moroso e pouco efetivo, avalia Haddad. Os credores possuem pouca influência sobre o destino da massa falida e há pouca transparência em relação a informações do processo falimentar. Esses fatores prejudicam os credores e os empresário e, de forma ampla, a eficiência e a produtividade da economia brasileira. Um dos principais pontos do PL é qualificar a governança do processo falimentar. Amplia-se a participação dos credores e torna-os protagonistas do processo. Eles são os maiores interessados na liquidação eficiente dos ativos.
Enquanto o processo de recuperação judicial objetiva a negociação das condições de plano de recuperação judicial, com concessões recíprocas entre credores e devedor, com o intuito de prosseguimento da atividade empresarial e soerguimento da empresa, o processo de falência destina-se à liquidação do empresário insolvente, alienando seus ativos, pagando seus credores e recolocando na economia, de forma célere, ativos produtivos, ressalta a doutora Maria Rita Rebello Pinho Dias, juíza titular da 3ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais da Capital paulista, e o doutor César Ciampolini Neto, desembargador da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, em artigo conjunto sob o título “A profunda alteração ao procedimento falimentar proposta pelo PL 3/2024”, de 22.01.2024.
O PL traz a figura do plano de falênci0, com escopo mais amplo do que o plano de realização de ativos instituído pela Lei nº 14.112/2020, a ser reapresentado pela nova figura do gestor fiduciário, observam Maria Rita e César Ciampolini.
Diante da manifesta ineficácia do processo falimentar na fatiota atual, os credores passam a aceitar os planos de recuperação com descontos irracionais (deságios de 80%!), além do pagamento da dívida em prazos longos (20 anos!).
A Lei nº 14.112/2020 introduziu profundas alterações com a reforma de 2020: redefiniu os princípios gerais falimentares (art. 75); revogou o art. 157 extinguindo com a suspensão da
prescrição das obrigações do devedor até o encerramento da falência; instituiu prazo decadencial de 3 anos para a habilitação do crédito na falência (art. 10, §10); e, em especial, incluiu, entre as hipóteses de extinção das obrigações do falido, o decurso do prazo de 3 anos da decretação da falência (art. 158, V — “fresh start”); além de fixar o encerramento em si da falência (artigos 156 e 158, VI, respectivamente). Outra significativa inovação consistiu na introdução do art. 82-A: vedou a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.
Os princípios gerais falimentares (art. 75) são: I – preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
Em diversos momentos, o art. 75 revela a máxima preocupação com o tempo do processo: “permitir a liquidação célere” (art. 75, II), “viabilização do retorno célere” (art. 75, III), “(…) atenderá aos princípios da celeridade (…)” (art. 75, §1º), “liquidação imediata do devedor” (art. 75, §2º) e “rápida realocação útil” (art. 75, §2º). Essa preocupação do legislador demonstra ser a busca da celeridade, fator crucial para o funcionamento do mecanismo falimentar, sem o qual os objetivos, vem sendo frustrados.
A reforma da Lei nº 11.101/2005 pela Lei nº 14.112/2020 promoveu inúmeras e profundas inovações ao procedimento falimentar, destinadas a torná-lo mais célere, assinala a profª Renata Paccola Mesquita, mestre em Direito pela PUC/SP, em seu artigo de 23.11.2023 intitulado “A duração do processo falimentar e as tentativas de maior eficiência”.
Vale mencionar a alteração trazida ao inciso V do art. 158 da Lei 11.101/2005, no intuito de atribuir celeridade e agilidade ao feito falimentar. Antes de 2020, as obrigações do falido se extinguiam com o decurso do prazo de cinco ou dez anos, contados do encerramento da falência, considerando se o falido fora condenado por prática de crime falimentar, ou não. Visando o reingresso do falido no mercado econômico, a Lei nº 14.112/2020 encurtou o prazo para a extinção de suas obrigações. Passou a ser de três anos, contados da decretação da quebra.
A falência, nos dias atuais em avaliação mais racional, deixa de ser encarada em um viés puramente punitivo e passa a ser “um modo de o exercício da atividade se tornar mais eficiente, com a preservação da função social da empresa”.
A redação do art. 75, §2º, da Lei nº 11.101, na ótica da doutora Maria Rita Rebello Pinho Dias, traz disposição reveladora: a falência, mais do que uma forma de liquidação forçada de uma empresa inviável ou uma execução coletiva, consiste em mecanismo de preservação dos benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial.
Como bem explanado por Marcelo Sacramone, “a extinção das obrigações, ainda que não satisfeitas, permite que o falido possa retomar a desenvolver suas atividades, contraindo novos débitos e créditos. É o chamado “fresh start”, ou recomeço. Incentiva o empresário que teve insucesso a continuar arriscando e empreendendo”. (“Comentários à lei de recuperação de empresas e falência”. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 335).
De início, o PL não agradou, como consigna José Higídio, repórter da revista Consultor Jurídico, em sua reportagem de 14.01.2024 sob o título “Governo propõe nova figura nas falências, mas ideia não agrada a especialistas”. Ao encaminhar o PL 3/2024 à Câmara dos Deputados, o Poder Executivo solicitou a tramitação no Congresso Nacional no regime de urgência previsto no § 1º do art. 64 da Constituição. Mas, em 07.08.2024, o Poder Executivo pediu o cancelamento da urgência, e o PL, remetido em 10.04.2024 ao Senado Federal, passou a tramitar em regime de prioridade.
Essa mudança deve-se às reações ao PL, contra o qual se insurgiram administradores judiciais e sua lastimável rede de protegidos, descomprometidos tanto com os interesses dos credores como em relação aos princípios gerais falimentares. O CNJ confirma e atesta o recebimento de denúncias a respeito de indicações suspeitas de administradores judiciais no Brasil, bem como da falta de transparência e de morosidade propositais nos processos de falência.
O CNJ está atento ao cenário e certamente adotará medidas destinadas a confranger virtuais desvios que serão apenados. São obscuros muitos dos processos de falência no Brasil. Permitem desconfiança e até aparente corrupção organizada. Em alguns esquemas, administradores de massas falidas se enriqueceram gerenciando a venda de ativos da empresa quebrada e seus lucros, recebendo honorários e contratando peritos coligados enquanto esticam as falências, segundo a reportagem de 01.07.2024 do Estado de Minas (https://www.em.com.br/).
Um administrador só pode ser designado para coordenar quatro falências e o mesmo número de recuperações judiciais, de acordo com a Resolução nº 393/2021 do CNJ. Mas, na prática, o administrador utiliza contratações recorrentes para apoio, e o bolo é repartido entre as mesmas mãos em várias situações.
No curso das falências, constatam-se, entre outros, os seguintes pontos de violação direta à Lei nº 11.101/2005: descumprimento do prazo máximo de 180 dias, contados da data da arrecadação, para a alienação de todos os bens da massa falida (Lei nº 11.101/2005, art. 224, III, “j”); deferimento de pedidos de habilitação de créditos já fenecidos pela decadência (Lei nº 11.101/2005, art. 10, § 105); ausência de apresentação pelo administrador judicial da conta demonstrativa da administração, especificando com necessária clareza a receita e a despesa (Lei nº 11.101, art. 22, III, “p”); as contas apresentadas pelo administrador judicial são peças no mais das vezes juridicamente inidôneas, processualmente imperfeitas e tecnicamente ineptas.
A rápida alienação dos bens, entre outros benefícios, “reduz encargos da massa com sua manutenção ou pagamento de respectivos tributos”, como assinala a doutora Maria Rita Rebello Pinho Dias, Em. juíza titular da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital de São Paulo, em seu artigo de 05.12.2022 intitulado “Alterações trazidas na alienação de bens nas falências do Decreto-Lei 7.661/45”6 . “A rápida alienação dos bens mostra-se a solução mais aderente às particularidades e necessidades de um processo concursal complexo, com multiplicidade de partes e interesses, como o é o caso da falência”, complementa a Em. juíza. Ela salienta o art. 1427, § 2º-A, da Lei nº 11.101/2005, previsão compatível com a orientação da célere alienação dos ativos.
Após quase 20 anos de vigência da Lei nº 11.101/2005, o Comitê de Credores, criado para trazer os credores para participar da falência, é um completo fracasso. A mais ampla participação de credores na condução do processo falimentar é pretensão justa.
A aprovação do PL Nº 3/2024 é mais uma iniciativa para tanger o processo falimentar ao leito da legalidade e dos princípios gerais falimentares.
*Ernani Barreira Porto,
Ex-presidente do Tribunal de Justiça do Ceará (mandatos 12.06.1992 – 24.02.1994 e 24.02.1994 – 12.06.1995), professor
aposentado da UFC e advogado militante.