“Na condição de colegiado com maior legitimidade institucional para representar a população, o Parlamento chancela a liberdade de expressão em toda a plenitude”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves
Confira:
O Parlamento, pela sua própria natureza, não é infenso a críticas. Bem ao contrário, na condição de colegiado com maior legitimidade institucional para representar a população, o Parlamento chancela a liberdade de expressão em toda a plenitude. Tanto isso é verdade, que as ditaduras assestam suas baterias primeiro do que tudo contra o Parlamento e a Imprensa. Por agora, as mídias em todas as suas feições, em especial as redes sociais, que determinados “espíritos democráticos” insistem em vê-las regulamentadas. Regulamentação é, de fato, o outro nome de censura prévia.
Mas, voltemos à vaca fria. Neste ano em que a Assembleia Legislativa do Ceará comemora 190 anos de existência, com exaltar-lhe o perfil histórico de cidadela da democracia onde as ideias mais díspares – às vezes disparatadas – convivem normalmente mercê de civilizado acordo tácito, vale lembrar momentos em que foi alvo de críticas acerbas, certamente em face de atropelos protagonizados por suas excelências, os senhores deputados.
O aracatiense Pedro Pereira da Silva Guimarães (1814-1876), advogado, jornalista e abolicionista aguerrido, foi deputado provincial e deputado geral, intimorato em suas posições, sobretudo na defesa da libertação do elemento negro escravizado. Antes, porém, de exercer o mister parlamentar, Pedro Pereira emprestou seu talento crítico-satírico às páginas do jornal “Pedro II”, no qual escreveu uma série de acerbas crônicas subordinadas ao título “Ladra da Feira”, numa referência a mercado popular existente em Lisboa, Portugal, desde o século XVIII, conhecido por vender objetos usados, antiguidades e quinquilharias. Pedro Pereira não poupava os membros da Assembleia Legislativa Provincial, e em um dos escritos achou por bem apelidar cada um dos deputados, de forma jocosa.
Senão vejamos: Tristão de Alencar Araripe – _Piti_ ; Hipólito Cassiano Pamplona – _Benguela_ ; Padre Cerbelon Verdeixa – _Canoa Doida_ ; Canuto Lobo – _Vaquinha;_ Matias Pacheco – _Melaço_ ; José Marcos – _Rato de Fogão_ ; Silva Braga – _Coati_ ; Braga Moleque – _Rodim_ ; Francisco de Paula Barros – _Paula Sabrego;_ Canuto de Aguiar – _Alferes Fujão_ ; Laureano – _Cabeça de Porco_ ; o vigário Justino – _Padre Estôpa;_ Aires do Nascimento – _Doutor Caboré_ ; Paula Martins – _Paulo Entulho_ ; João Zeferino – _Bacorinho_ ; Dr. Ramos – _Dr. Peru_ ; Dilermano – _Jaboti_ ; Pe. Pedro Rodovalho – _Pe. Brombombom;_ Francisco José de Sousa – _Surubim_ ; José de Sá Barreto – _Pe. Garapu_ ; J. J. Rodrigues Pessoa – _Pança Balôfa_ ; Pe. Antônio de Castro – _Pe. Arara;_ José Raimundo Pessoa – _Sapo Boi;_ Francisco José de Matos – _Almocreve_ ; Frederico Pamplona – _Dr. Patrono_ ; João Crisóstomo Sucuri – _Cação Sucuri_ . Da verve satírica de Pedro Pereira só escaparam naquela legislatura, o deputado Caracas e o Padre Frota. Detalhe: como se vê era muito padre para esse ambiente de pecados permanentes.
Mas, a sanha crítica do futuro deputado Pedro Pereira não para nos apelidos pessoais. Metendo-se a poeta, o verrinoso escriba em soneto explosivo compara a Assembleia Legislativa à feira lisboeta de quinquilharias.
Eis os versos:
Negro bando de abutres famulentos
Infames, infernais, torpes harpias,
Sanguessugas não fartas de sangrias,
Canalhaço glutão sempre bulhento;
Grupo de regatões aurisedento,
Facção de Gracos vis dos nossos dias,
Lote de bestas rábidas, bravias,
De fogosos orates parlamento;
Esta de chuchadores alcateia
Melhor conseguiria numa estrada
Os seus sinistros fins, lambaz ideia;
Que à tal reunião certo não quadra
O respeitoso nome de Assembleia,
Mas, esse que lhe dão – FEIRA DA LADRA.
Ontem como hoje, para o bem ou para o mal, a Assembleia Legislativa continua a ter sua legitimidade justamente porque é a representação fidedigna da população. Todos os caracteres da nossa sociedade, bons ou maus, estão ali representados, a confirmar o axioma popular: cada povo tem a representação que merece.
Barros Alves é jornalista e poeta