“Walter Filho, Saramago e o silêncio de Deus” – Por Barros Alves

Barros Alves é jornalista e poeta

“É preciso ser paciente, não querer antecipar-se aos desígnios do Senhor. Ter fé e esperança”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves.

Confira:

Certamente constitui tarefa inglória tentar compreender os desígnios de Deus, recorrendo a elucubrações de gente como o português José Saramago, renitente ateu stalinista. Foi o que fez o senhor Walter Pinto Filho em face da perplexidade diante do episódio da matança de crianças, ordenada por Herodes Tetrarca da Galileia, sentimento que expressou em artigo publicado neste espaço, subordinado ao título “A Noite dos Esquecidos – A Paixão Silenciosa de Cristo”. De logo, é estranhável a companhia do articulista para falar dos mistérios de Deus, quando há tantos teólogos e pesquisadores reconhecidamente respeitáveis na Igreja e na Academia, que até poderiam ensejar legitimidade aos argumentos do perplexo acusador de Deus. Lembrando, de logo, que o Todo-Poderoso não precisa da defesa de ninguém em face de qualquer tipo de acusação que se lhes faça, ainda que de infanticida. Por pertinente, já registro que para salvar o povo escolhido da escravidão egípcia, Deus não deixou vivo um só primogênito da nação opressora. (Cf. capítulos 11 e 12 de Êxodo) Esse episódio me traz à baila versos de outro comunista, o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht: “Todos dizem que o rio caudaloso é violento; ninguém diz serem violentas as margens que o comprimem.” Ademais, a morte dos primogênitos carrega um simbolismo profundo, apresentando a autoridade e a suprema justiça divina inquestionáveis, porque infalíveis perante a História. Bem ao contrário da justiça dos homens, em especial daqueles que questionam Deus. Não se queira, portanto, que verdades de fé expressas em livros sagrados sejam compreendidas por pessoas antirreligiosas, como é o caso de Saramago, uma alma revoltada com o mundo e angustiada diante da Transcendência. Nesse aspecto, Saramago, o grande romancista português que leio com enlevo, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, é um desqualificado e perfeitamente dispensável como exemplo. Igualmente o Camus de “O Homem Revoltado”, a descrença de Saramago instala-se no ponto de junção da ignorância religiosa e do ressentimento

Em 26 de junho de 2020 escrevi um texto publicado na minha conta do Facebook, o qual, por pertinente, aqui transcrevo: “Saramago deve ser lido, sim. Mas, não se pode abstrair jamais sua condição de escritor ateu, anticatólico, portanto, anticristão, cuja contribuição para a formação religiosa das pessoas é zero. Ele foi defensor do stalinismo, inclusive. Ou seja, o que existe de pior na história do comunismo internacional. A escritura de Saramago, por mais humanista que seja, não passa de um prolongamento do pensamento marxista-leninista. Só a misericórdia de Deus o salvará do fogo do inferno.” Enfim, humanismo não é cristianismo. Cristianismo não é equilíbrio, é escolha de lado. “Quem não está comigo, está contra mim” (Cf. Mateus. 12.30; Lucas. 11.23). “Eu conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera que fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” (Cf. Apocalipse 3.15,16).

A perplexidade que acometeu o senhor Walter Pinto Filho e que o fez arrimar-se em Saramago, não faz sofrer o cristão, que se escuda nas colunatas indestrutíveis da fé. Ambos compreensivelmente ressentem-se com o silêncio de Deus em face de atrocidades praticadas pelo homem, como é o caso das guerras, por exemplo. E, por agora, me vem à mente o grito poeticamente lancinante de Castro Alves, ao denunciar o sofrimento dos escravos: “Deus, ó Deus! Onde estás que não respondes?/ Em que mundo, em que estrela Tu te escondes,/ Embuçado nos Céus?…” Por que Deus permite catástrofes? Quem consegue compreender racionalmente a extrema violência das guerras, quando o Filho de Deus é o Príncipe da Paz e os cristãos são chamados a ser sentinelas da paz? A fala de São João Paulo II, em Audiência Geral, em 11 de dezembro de 2002, ecoa “per saecula saeculorum”, em todos os tempos: “Além da espada e da fome, existe uma tragédia maior, aquela do silêncio de Deus, que não se revela mais e parece estar fechado em seu céu, como que desgostoso do agir da humanidade. As perguntas a Ele dirigidas tornam-se tensas (…) Se o povo se converter e retornar ao Senhor, também Deus mostrar-se-á disposto a ir a seu encontro para abraçá-lo.” Na verdade, como bem lembrado pelo Arcebispo Fulton Sheen, um prelado de reconhecidos méritos intelectuais, os grandes ateus da literatura rejeitaram a Deus. Ele explica: “Tal ateísmo é mais antiteísmo; é mais ausência de religiosidade do que sentimento anti-Deus.” E cita Nietzsche, que escreveu: “Matei Deus porque ele me separa dos homens e agora Sua morte me isola mais do que nunca. Não permitirei que esse grande cadáver envenene minhas amizades humanas.” Sheen prossegue com impecável lógica: “Pode dificilmente haver uma negação de Deus, quando se está continuamente acusando-O de injustiça. Os punhos em revolta não são erguidos contra o alto Céu, ao menos que haja alguém, para Quem se levante o bastão.” Com efeito, portanto, é o “agir da humanidade” que causa a desgraça, não Deus, cujo silêncio é sentido pelo cristão como uma presença quase palpável.

No caso específico, objeto desta crítica, qual seja a matança de crianças, ordenada pelo idumeu Herodes, preposto do Império romano na Judeia, o articulista teria tomado melhor caminho se tivesse buscado luzes em tratados de Exegese e Hermenêutica cristãs, com os quais não teria dificuldade de lidar; ou mesmo de História da Igreja, em vez de meter um ateu desavisado, com suas divagações heréticas, no meio dessa história. Não se deve esquecer que, apesar de todas as desconfianças na realidade histórica do acontecimento, o relato ditado pela crença, o episódio da matança das crianças, não pode ser desvestido de conteúdo histórico. Daí, a incompreensibilidade dos que intentam alcançar a mente de Deus ou simplesmente descredenciar Sua justiça.

Giovanni Papini (História de Cristo), diz que ninguém jamais soube o número das crianças sacrificadas ao medo de Herodes. Arrimado em precedentes, Benedict T. Viviano, ao comentar o Evangelho de Mateus, lembra que o incidente evoca a ordem de faraó para matar toda a descendência masculina dos israelitas (Êxodo 1.16), e que se o episódio for histórico, “o número de crianças mortas não precisaria ter excedido a vinte.” O que nada significaria para Herodes, afeito a carnificinas maiores. Papini complementa e dá uma bela explicação teológica para o fato: “Não era a primeira vez que na Judeia se faziam passar a fio de espada as criancinhas: nos tempos antigos o povo hebreu castigava as cidades inimigas pela matança de velhos, esposas, moços e meninos, poupando apenas as virgens que fazia escravas e concubinas. Javé, o Deus ciumento, muitas vezes ordenara esse morticínio e agora o idumeu aplicava ao povo, que o aceitara, a lei mosaica de Talião. Ignoramos o número de inocentes, mas segundo Macróbio, entre eles estava um filho de Herodes amamentado em Belém. E quem nos diz que o monarca assassino ainda sofreu quando soube da desgraça? (…) Este assassínio em massa ao redor de um berço inocente, o sangue derramado pelo recém-nascido que devia comprar com o seu sangue o perdão dos culpados, este sacrifício humano em honra daquele que será crucificado, tem um sentido profético. Milhares de inocentes deverão morrer depois de sua morte, só pelo crime de terem crido na sua ressurreição; nascia destinado a sacrificar-se pelos outros, mas eis milhares de recém-nascidos a morrerem por ele como que para expiarem o seu nascimento. Há nessa oblação sangrenta, nesse morticínio de puros, um tremendo mistério. Pertenciam à geração que devia trair e crucificar Jesus. Morrendo nesse dia aos golpes de Herodes, não viram morrer o seu Senhor. Sua morte os salvou e os salvou para sempre. Seus pais e seus irmãos vivos os vingarão um dia – mas serão perdoados “porque não sabem o que fazem.”

Para demonstrar a crueldade de Herodes, Bento XVI, o Papa Teólogo, quando trata da infância de Jesus na extraordinária biografia “Jesus de Nazaré” (vol. 1) escreve: “No ano 7 a. C., Herodes justiçara os seus filhos Alexandre e Aristóbulo, porque sentia o seu poder ameaçado por eles. No ano 4 a. Ce., pelo mesmo motivo eliminara também o filho Antípatro. Herodes raciocinava apenas segundo as categorias do poder; a notícia de um pretendente ao trono, que ouvira dos magos, deve tê-lo alarmado. Visto o seu caráter, era claro que nenhum escrúpulo poderia detê-lo.” O pontífice cita Abraham Schalit, autor judeu: “A crença na chegada ou no nascimento do rei messiânico, no futuro imediato, pairava então pelo ar. O déspota suspeitoso, por todo o lado sentia traição e hostilidade, pelo que uma vaga voz, chegada ao seu ouvido, podia ter facilmente sugerido à sua mente enferma a ideia de matar os meninos nascidos no último período. Portanto, a ordem não tem nada de impossível.” Depois de outras pertinentes observações, Bento XVI conclui: “Mateus nos narra verdadeira história, que foi meditada e interpretada teologicamente, e assim ele nos ajuda a compreender mais profundamente o mistério de Jesus.” O mistério de Jesus. Eis o ponto inquestionável à luz da fé. Fora disso tudo não passa de fastidiosa especulação.

Por final, não se deve abstrair o fato de que o homem, na expressão de Charles Möeller, é feito de tal modo que, não estando moralmente preparado para ir ao encontro de Deus, nem o milagre mais extraordinário o convencerá. Portanto, é preciso ser paciente, não querer antecipar-se aos desígnios do Senhor. Ter fé e esperança. Nunca tentar interpretar os atos da Providência. Principalmente se o intérprete não pertence à seara dos crentes em Jesus, o Cristo.

Barros Alves é jornalista e poeta

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