“UNI, DUNI, TÊ…” – Por Tuty Osório

Com o título “UNI, DUNI, TÊ…”, eis mais uma crônica de Tuty Osório, jornalista, publicitária e escritora.

Confira:

Chego sem palavras ao encontro na casa de Theodora. Sem vontade de sair, chamou pela gente e só pude na quinta, já que desde dias atrás trabalho ON LINE direto. É chato estar calada porque o motivo da reunião é a conversa. Mais, ou menos, católicos, tomaremos um vinho, sem exageros. No meu caso ainda tenho muito trabalho pela frente. Ainda bem. Já afirmei e repito que gosto
do meu trabalho. Pela manhã tive uma atividade para lá de agradável. Era agenda formal, porém, o papo foi tão interessante que tal qual quase tudo o que faço, virou alegria. Não me sinto obrigada a ser feliz, só que mesmo com a tristeza senhora, é sempre hora boa de mandá-la embora. Como diz meu amigo João de Paula, isso é assunto para outra história.

Finalmente resolvida a falar, conto que, estarrecida, li sobre o que nomearam de roleta russa sexual. Uma adolescente de 13 anos engravidou sem saber de quem, durante uma festa onde aconteceu uma prática de sexo grupal com colegas de colégio, aliás, comum e frequente. Lado a lado, em outra reportagem, na mesma internet, sem relacionar os fatos, fala-se de combate à violência nas escolas. Comparo uma prosa com a outra e fico mais que chocada: agora estou desconfortável. Pior, envergonhada. O que é que há? Onde e quando perdemos a noção da realidade? Calma, não estou culpando ninguém. Só estou me questionando, e é a mim que interrogo, o que diabos está acontecendo?

A garotinha grávida não é minha conhecida. Estuda numa instituição privada, de mensalidade em torno de 2 mil reais. Não aparece a cidade, nem mesmo a região. A pronúncia da professora que dá entrevista a um PODCAST parece ser de São Paulo. Ou seja, nada de estereótipos de falta de acesso a informação. Não é escola pública, não é favela, aparentemente, também não é norte e nordeste. Há ênfase na urgência de educação sexual nas escolas. Ou seja: manuais, formalidades, performances que substituem o essencial ME IMPORTO, que sumiu, faz tempo. Penso se poderia ser uma das minhas filhas? Se, de fato, estive e estou atenta a elas, ao ambiente, ao mundo que vai além de meus interesses diretos. Interesses que tecem a cínica capa de que ralamos demasiado para os sustentar, daí não sobra tempo.

Assustada, consolo-me que não, não poderiam ser as minhas filhas. Não foram. Com 28 e 20 anos parecem a salvo de algo semelhante. Expostas aoutros perigos, por serem mulheres, começando por isso. Desculpo-me com Theodora. A história não ajuda, em nada, sua necessidade de distração. Não consegui controlar-me, explico desajeitada. Ela balança a cabeça afirmativamente, mais condescendente com meus pânicos que em vezes passadas. O duro vai ser conseguir dormir, mais tarde. Mesmo no aconchego das centenas de livros em volta, o abajur tão discreto quanto belo, a cortina delinho cru aberta para a noite meio enluarada.

Lá longe, está a menina que não morrerá do frio invernal que faz sucumbir a vendedora de fósforos do conto de Natal da minha infância. Faleceu, sim, o seu direito a viver sem medo, sem rótulos, envolta numa liberdade desfocada, que seria alvissareira, ainda que tardia.

*Tuty Osório

Jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024, lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais.

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