O jornalismo, muitas vezes, abarca, mas não abraça. Ele não dá conta de ir além e nem é o objetivo. No meu caso, a informação separou-se: informa-ação.
Como repórter, deparei-me por anos com muitas histórias contadas por mulheres vítimas de violência doméstica atendidas na Casa da Mulher Brasileira. O jornalista gosta de números, estatísticas, da opinião do especialista e do/a personagem. As personagens, no caso, eram mulheres que precisavam de mais de trinta segundos, pois tinham muito a dizer. Muitas coisas não cabem em uma única sonora, nem em duas.
O jornalismo, muitas vezes, abarca, mas não abraça. Ele não dá conta de ir além e nem é o objetivo. No meu caso, a informação separou-se: informa-ação.
Como repórter, deparei-me por anos com muitas histórias contadas por mulheres vítimas de violência doméstica atendidas na Casa da Mulher Brasileira. O jornalista gosta de números, estatísticas, da opinião do especialista e do/a personagem. As personagens, no caso, eram mulheres que precisavam de mais de trinta segundos, pois tinham muito a dizer. Muitas coisas não cabem em uma única sonora, nem em duas.
Essa foi a primeira reação de uma das escolhidas para participar da oficina. Concordo, mas escrever também liberta e, para libertar, é inevitável doer. Às vezes, para a paz reinar, o conflito torna-se inevitável. Um reinado de paz para uma “princesa” que sofreu violência doméstica e não acredita mais em conto de fadas está em olhar para dentro do seu “castelo” e dizer: “A Torre é Minha”.
Vi a rebeldia das alunas (algumas) travestida da recusa pela escrita. Logo depois, percebi que era uma proteção. Na primeira aula, algumas mulheres duvidaram de si e de sua voz. Muitas não percebiam que, a cada fala delas, um livro já nascia. Uma disse que se sentia “uma aranha em uma teia”, outra apontou que “de onde uma mulher sai chorando, nenhuma sorri por muito tempo” e eu também ouvi que “quem joga pedra não pode querer curar o machucado”.
“Aos vinte anos, sonhava em construir uma família, ser uma Barbie, com várias roupas diferentes e tendo várias profissões, na companhia do meu parceiro de vida, mas o tempo passou. Aos quarenta anos, depois de muitos abusos e tristezas, pergunto a mim mesma: em que momento eu me perdi? Onde me encontrar?
Aprendo, ao mesmo tempo que partilho:
— Primeiro, não permita mais ser a vítima e, diante de qualquer suspeita, caia fora do relacionamento. Aprenda a dizer não! Cada dia é como um degrau para chegar onde deseja.
Não é fácil seguir em frente. Levante a cabeça e não se importe com o que o outro vai dizer. Minha casa está uma bagunça, mas entendi que minha cabeça está pior; medo de vê-lo, medo de viver tudo de novo, medo das ameaças serem cumpridas.
O pânico de não saber se estarei viva amanhã. Medo de desistir. Medo de não suportar mais essa dor, essa mágoa.
Eu tenho um pouco de esperança de que vou melhorar, mas não sei se vou conseguir permitir que outro alguém entre na minha vida” (S.A, 2024)
Senti-me honrada, pela confiança e partilha. Como jornalista, pensei em contar as histórias, mas, como escritora, percebi que, se elas se enxergassem como donas de suas vidas e autoras da própria escrita, conseguiríamos fazer uma transformação pessoal, um caminho sem volta.
Sofrimento, abandono, fé e recomeço permeiam as vinte e quatro narrativas. “Após a morte do conto de fadas, a ressurreição”. A obra foi publicada pelo Senado Federal e o lançamento aconteceu na Bienal Internacional do Livro do Ceará, no dia 12 de abril de 2024.

“O livro é um testemunho coletivo de força e esperança, dando voz a mulheres que, tantas vezes, foram silenciadas. Sua importância está justamente nisso: ao trazer à tona experiências reais, escritas por aquelas que as viveram, a obra se torna um poderoso instrumento de empoderamento, memória e transformação”, aponta o Senador Randolfe Rodrigues, que preside o Conselho Editorial do Senado Federal (CEDIT).

A obra está disponível na livraria do Senado Federal, podendo ser acessada gratuitamente no link https://encurtador.com.br/Hwt5Z e também pode ser adquirida na livraria do Senado no link https://encurtador.com.br/hGvvM.

A Senadora Augusta Brito, que defende a criação da Comissão Permanente de Direito das Mulheres, reforça seu compromisso com a valorização da cultura, da educação e da equidade de gênero. “Participar de um evento como a Bienal do Livro do Ceará é uma oportunidade de fortalecer o diálogo em torno de temas fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É de extrema importância contar com o apoio do Senado para fazer com que este livro alcance ainda mais pessoas. Nós, mulheres, sabemos da importância do tema tratado por Mirelle e pelas autoras que participaram deste livro. É fundamental que usemos nossa voz para combater todas as formas de violência contra as mulheres”, destacou a parlamentar.

O lançamento, em Fortaleza, contou com a presença do vereador de Fortaleza Gardel Rolim, que lembrou a criação da Procuradoria da Mulher, inaugurada em outubro de 2023. “Criada durante nossa gestão à frente da presidência da Câmara Municipal de Fortaleza (2023-2024), a Procuradoria Especial da Mulher é mais uma contribuição que o legislativo dá para o fortalecimento das políticas de defesa dos direitos das mulheres. Com esse equipamento, além de qualificar os debates e os projetos de lei nessa temática, criamos a estrutura necessária para acolher e encaminhar denúncias de violações de direitos. Naquele período, buscamos ampliar a participação das mulheres nas decisões da Casa e na promoção das políticas públicas no Município. É uma conquista histórica das mulheres e da sociedade de Fortaleza como um todo”, ressalta o vereador Gardel Rolim.

A atual Procuradora Especial da Mulher na Câmara Municipal de Fortaleza, a vereadora Adriana Almeida, conta que além da violência doméstica em si, existem outras relacionadas, como o afastamento da família, o questionamento das pessoas e o sofrimento dos filhos. “Eu assumi a Procuradoria em fevereiro e estamos intensificando as ações nas escolas nos terminais de ônibus, conversando com as mulheres e a ideia é criarmos uma Procuradoria itinerante, que percorra os bairros”, explica.
“Pensei que ele me amava, por isso cuidava tão bem de mim. Passei por muitos momentos ruins, mas nunca deixei de lutar pela minha família. Ele sempre me humilhava com palavras, “me dando vários homens” do começo ao fim de nosso casamento (sim, porque eu casei e há dois anos nos divorciamos). Porém, ainda luto todos os dias contra essa dependência que tenho dele e me culpo por não ter forças de encerrar esse ciclo de violência que me faz sofrer tanto. Sinto-me impotente por não colocar um ponto-final em tudo isso, mas, em meio a tudo isso que passei, não desisto de lutar e, um dia, poder dizer, em alto e bom som, que eu fui uma mulher vítima de violência doméstica, porém sobrevivi” (LUZ, 2024)
Com relação ao livro “Após a Morte do Conto de Fadas, a Ressurreição’’, a vereadora pontua que a escuta faz parte do processo de acolhimento. “Eu sou professora e sei que dar a oportunidade de colocar para fora sentimentos tão genuínos é curativo. As mulheres querem e precisam ser escutadas. O potencial da escrita de cada uma certamente já teve um papel terapêutico e encorajador em cada uma e que agora, com a publicação, irá ajudar muitas outras. Muitas mulheres entram em uma relação que acaba com os seus sonhos. É importante pensar na perspectiva de um reviver, a partir do rompimento do ciclo de violência. Não podemos romantizar nem normalizar a violência que as mulheres sofrem. A ressurreição do amor é necessária, principalmente o amor próprio”, explica Adriana Almeida.

“Em uma das brigas, ele me enforcou com uma barra de ferro contra
a porta e eu consegui me livrar, passei um estilete nele, que viu que eu
não estava de brincadeira e nem apanhava mais de ninguém.
Foram tempos sofridos. Eu decidi me separar e ele foi preso, em
flagrante, na frente do hospital. Depois disso, tentei mais uma vez porque gostava dele,
mas ele não mudou em nada. Eu me separei e vi outra
forma de viver. Eu não aceito mais viver assim. Eu não quero mais isso para mim.
Passei por outros abusos, mas não dou mais minha cara para ninguém bater.
Hoje sou feliz com minha filha, luto pelos seus direitos. Eu me amo e
amo a minha filha. Não aceito uma relação com abuso. Eu superei tudo
o que vivi e, hoje, posso falar e viver de forma diferente.
Eu encontrei uma árvore com frutos e sombra para descansar.
Quero sempre poder ajudar e dizer “não” mais vezes para mudar as situações difíceis. Sou vítima, mas não desisti”
(Como uma fênix, 2024)
A Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará (PEM) tem se dedicado a promover os direitos das mulheres e a combater a violência de gênero através de diversas iniciativas. Entre elas, destacam-se o trabalho preventivo nas escolas, com palestras sobre direitos das mulheres, e o Grupo Florescer, um espaço de ajuda mútua entre mulheres que foram acompanhadas pela PEM. Além disso, a Procuradoria oferece atendimentos jurídicos e psicológicos gratuitos, garantindo apoio técnico e emocional às mulheres em situação de vulnerabilidade.

A PEM também realiza anualmente a Marcha em Defesa das Mulheres e promove formações técnicas para colaboradores da Assembleia Legislativa e da rede de atendimento local. A Procuradoria busca ainda fortalecer as Procuradorias em todas as regiões do Ceará, como demonstrado pelo I Workshop Formativo das Procuradorias Especiais da Mulher do Ceará, realizado em março deste ano. Essas ações refletem o compromisso da PEM em promover a igualdade de gênero e combater todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres no estado. “Essas mulheres encontraram na palavra escrita não apenas um canal de expressão, mas um espaço de cura, libertação e reconstrução de suas identidades. Ao assumirem a autoria de suas histórias, muitas delas pela primeira vez, deixaram de ser apenas personagens do sofrimento para se tornarem protagonistas do próprio recomeço. O processo pode ser dolorido e libertador, mas temos o poder e direito renascermos”, aponta a Procuradora.

A Bienal Internacional do Livro do Ceará, que reuniu, em dez dias, um público de mais de 450 mil visitantes, com recorde de vendas e programação plural com mais de seiscentas atividades, trouxe a temática “Das fogueiras ao fogo das palavras – Mulheres, Resistência e Literatura”. Para Maura Isidório, coordenadora geral da Bienal, a obra lançada no evento representa um sopro de vida para as mulheres escritoras e para todas que terão acesso à obra. “A forma como o conteúdo desse livro foi construído, no caso, por meio de uma oficina de escrita para vítimas de violência doméstica, é uma maneira muito bonita de dar voz e vez às mulheres que fazem parte de uma conjuntura tão complexa e dolorosa, então, esse livro prova que a escrita é importante para o processo de descoberta de uma nova forma de viver, a partir da escrita literária, essas mulheres percebem-se como pessoas que cuidam de seus destinos e que, a partir daí, conseguem descobrir novas formas de vida e buscar os caminhos para superar a violência”, aponta Maura Isidório.

DEPOIMENTO
Eu, Mirelle Costa, tive a honra de conhecê-las, explicar sobre escrita afetuosa, ensinar sobre pseudônimos e ler, em primeira mão, histórias de vida que contam revoluções. Testemunhos de fé de quem sabe que é preciso desarquivar sonhos.
Muitas se intimidavam com a língua portuguesa e eu penso que erros de gramática são corrigíveis, nós não podemos cometer erros de alma. Se as histórias do livro são crônicas ou micro contos, não importa. A obra que relata tantas dores também é cheia de vida.
Nessa caminhada de escuta e partilha de lições, foi impossível dizer quem mais aprendeu com quem, tanto que nossas falas se confundem e eu as coloco aqui: “A única certeza que eu tenho é que preciso continuar. Ninguém vai fazer isso por mim”.
Assim como elas se esvaziaram na escrita, quem tem a oportunidade de acessar o livro, também pode fazer o mesmo, afinal, um livro é uma experiência sinestésica.
Proporcionar às meninas a sensação do autógrafo,
A violência doméstica retira dessas mulheres o direito de expor o próprio nome. Em solidariedade a elas, que me ensinaram tanto, fiz o mesmo. Na capa do livro, assino com meu pseudônimo, M.C.S.
E na contracapa, um cordel de Julie Oliveira, mostra que a poesia cabe em todo canto.
Neste livro toda dor
Se converte em fortaleza.
E cada palavra escrita
Cada dúvida, incerteza,
Dão voz ao grito guardado
Novo olhar para o passado
Deixa pra trás a tristeza.
Mulheres, suas histórias
Aqui vamos conhecer
São relatos corajosos
E é certo, pode doer,
Mas, há também liberdade,
Aprendizado e verdade
Em tudo que iremos ler!
Para além das violências
Sofridas e relatadas
Cada página é pura vida,
Vivências compartilhadas.
É força que se eterniza
Nova estrada que se pisa
Nas palavras publicadas!
Julie Oliveira
Cordelista e Editora de Livros