“A defesa da democracia exige resistência política, engajamento concreto, aprendizado continuado, aprofundamento ético sobre os caminhos que queremos construir”, aponta o cientista político Alexandre Aragão de Albuquerque
Confira:
“A liberdade dos modernos não pode ser confundida com a liberdade dos antigos. A liberdade moderna é a liberdade dentro da lei, e não contra a lei”. (Norberto Bobbio)
Em seu famoso livro A ERA DOS DIREITOS (Elsevier, 2004), o pensador e político italiano Norberto Bobbio (1909-2004), defende que os direitos são conquistas históricas, frutos de lutas sociais, e não verdades eternas. A luta pelos direitos é permanente e que uma era dos direitos só se consolidará quando houver um compromisso ético e político com sua universalização e proteção.
Os direitos de liberdade, para serem legítimos, precisam estar vinculados a um sistema normativo que os limite e os torne compatíveis com os direitos dos concidadãos, uma vez que tal direito fundamental não é absoluto, mas interdependente de outros direitos fundamentais, já que a convivência democrática exige o equilíbrio entre liberdade, igualdade e responsabilidade.
Reforça ainda que os direitos de liberdade só podem realizar-se plenamente quando acompanhados de garantias institucionais e de uma cultura política que valorize o bem comum.
As regras são procedimentos, meios a serviços dos fins a serem alcançados, devendo impedir, ao mesmo tempo, o arbítrio, a violência e a obscuridade dos atos públicos, buscando responder às demandas da maioria para garantir a participação do maior número de pessoas possível na vida pública.
As regras são necessárias tanto à representação quanto à participação política, e não podem ser vistas apenas como atributo da democracia representativa, porque quanto mais participativa for uma comunidade política, mais qualificados têm de ser seus procedimentos, principalmente quando se trata de uma participação sustentável. As regras de procedimento revelam-se indispensáveis para todo o campo político e da sociedade.
Também o sociólogo francês Alain Touraine (1925-2023), cujos estudos notabilizaram-se na sociologia do trabalho e nos movimentos sociais, em seu livro O QUE É DEMOCRACIA (Vozes, 1996), assinala que uma cultura democrática se alimenta pelo esforço de combinação entre diversidade e unidade, entre liberdade individual e a realização de projetos coletivos, tendo em vista uma livre e sadia convivência comum. Não há democracia se esses dois elementos não forem articulados e respeitados.
Viver democraticamente requer não apenas saber das próprias razões e projetos pessoais, fechando-se neles. É preciso aprender a conhecer as razões do outro, uma vez que a dimensão comum, componente de uma cultura e de uma vida democrática, entre sujeitos livres e iguais, requer visões e responsabilidades compartilhadas.
Consequentemente, o diálogo democrático apresenta-se como ferramenta fundamental, aquela que faz a ligação entre diversidade e unidade, entre liberdades pessoais e coletivas, por meio da vontade dos sujeitos de agirem e discutirem livremente, de igual para igual, no espaço público garantidor de tais ações.
Se o objetivo da convivência humana fosse a guerra, rachando continuamente as cidades e as nações, não seria necessária a política: bastava a guerra contínua para alcançar tal intuito.
Se, porém, o objetivo da vida democrática consiste em governar os humanos, convivendo pacificamente em um mesmo território local, municipal, nacional ou internacional, o diálogo democrático apresenta-se como ferramenta consistente, com a qual as diferenças podem ser vividas sem jamais se olvidar os princípios e valores, práticas e realidades, que unem os sujeitos numa existência comum. E isto requer vigilância, compromisso e aprendizado contínuos.
Portanto, a tarefa da democracia não é representar um só interesse, nem o interesse dos mais poderosos, mas garantir a inserção de todos os interesses, a partir daqueles interesses dos mais necessitados de bens materiais e imateriais produzidos socialmente, colocando-os em diálogo democrático, para a elaboração de projetos que assegurem simultaneamente o bem de cada um e de todos, constituindo-se como um verdadeiro pacto civilizatório de convivência humana na diversidade dos sujeitos. (Baggio, Antonio. Reflexões para a vida pública. Ed. Cidade Nova, 2006).
No Brasil, depois do golpe parlamentar perpetrado em 2016 contra a presidente Dilma Rousseff, o que se viu foi um movimento contrário, rumo ao autoritarismo.
Com a chegada do bolsonarismo ao poder, a partir de 1º de janeiro de 2019, constatou-se um projeto autoritário em construção, por meio de diversas ações orquestradas pela organização criminosa que responde ao processo penal na Corte Suprema do país, tais como: ataques sistemáticos ao Supremo Tribunal Federal (STF); complô golpista visando deslegitimar o processo eleitoral brasileiro, com ameaças contundentes, por diversos meios midiáticos e digitais, às urnas eletrônicas e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE); produção de um plano denominado Operação 142, o qual visava impedir a posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2023, objetivando à abolição do Estado Democrático de Direito; instrumentalização, pelo bolsonarismo, da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), em conluio com o Gabinete do Ódio, para espionar ilegalmente autoridades políticas, jurídicas, empresariais, jornalísticas e servidores públicos.
Durante os quatro anos deste desgoverno houve procedimentos sistemáticos minimizando ou violando direitos humanos, especialmente em relação a populações indígenas, quilombolas e lgbtqia+; demonização de movimentos sociais e Ongs, tratados como inimigos internos, como nos tempos da LSN da ditadura dos anos 1964-1985; promoção de uma retórica de naturalização da violência policial, militar e midiática; ataques à liberdade de imprensa e acadêmica; controle ideológico sobre instituições republicanas; revisionismo histórico; desinformação da população como método de ação política.
Assim, à luz do que refletimos acima, alicerçados no pensamento de Norberto Bobbio, constata-se que o bolsonarismo representa uma ameaça estrutural à democracia. Ao rejeitar a institucionalidade democrática, atacar a cultura dos direitos, desdenhar da ética da responsabilidade e manipular inescrupulosamente o conceito de liberdade, o bolsonarismo apresenta-se como inimigo declarado dos valores e princípios que sustentam a convivência democrática.
A pseudoliberdade anunciada pelo bolsonarismo não é apenas aquela para escravizar, mas para estuprar e matar crianças yanomamis, para anistiar criminosos golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Pseudoliberdade saudosa dos Atos Institucionais ditatoriais (AI-1, AI-2, AI-3, AI-4 e AI-5), da Censura aos meios de comunicação social, das sessões secretas de tortura e assassinato de brasileiros, do fechamento ao Congresso Nacional e do STF, das perseguições às liberdades civis e políticas, da política econômica concentradora de renda nacional nas mãos da classe dominante.
A defesa da democracia exige resistência política, engajamento concreto, aprendizado continuado, aprofundamento ético – teórico e prático – sobre os caminhos que queremos construir, não apenas para nós, mas para as gerações futuras. Resistir é imprescindível.
Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)