“Feminicídio na era da inteligência artificial” – Por Suzete Nocrato

Suzete Nocrato é jornalista e mestre em Comunicação Social da UFC. Foto: Arquivo Pessoal

Com o título “Feminicídio na era da inteligência artificial”, eis artigo de Suzete Nocrato, jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. “Precisamos desconstruir a objetificação da mulher — uma dinâmica que se manifesta desde o olhar invasivo e as piadas de teor sexual até a violência física, psicológica e o assassinato. Nada disso é banal. Tudo faz parte de uma mesma cultura de dominação”, expõe aarticulista.

Confira:

Ao ler nos jornais a notícia do assassinato de uma enfermeira de 31 anos pelo namorado, inconformado com o fim do relacionamento, fui invadida por um profundo sentimento de indignação — e de medo. Trago na alma o receio de que continuemos a normalizar a opressão da mulher pelo homem, como se fosse um traço inevitável da nossa cultura.

Durante uma conversa em um grupo no WhatsApp, uma prima — advogada e dentista — chamou minha atenção para o quanto o feminicídio está presente em diferentes camadas da nossa sociedade, muitas vezes naturalizado, outras tantas banalizado, seguindo fazendo vítimas.

Tocada por esse alerta, decidi revisitar os números no Ceará, apenas neste ano. E o cenário é assustador: em seis meses, onze mulheres foram brutalmente mortas por companheiros, namorados ou ex-companheiros. São histórias interrompidas por um padrão de crime que persiste e, pior, muitas vezes encontra justificativas sociais.

Esses casos nos forçam a encarar uma contradição que define o nosso tempo. Vivemos avanços tecnológicos extraordinários — como a inteligência artificial, a blockchain e a automação —, mas seguimos lidando com uma das formas mais primitivas e brutais de opressão: a violência de gênero. É assustador que, em pleno século XXI, ainda não se tenha conseguido garantir à mulher o direito de viver.

Embora múltiplos fatores sociais, culturais e econômicos estejam envolvidos no feminicídio, é inegável que o machismo estrutural é o alicerce que sustenta essa forma extrema de violência. Trata-se de uma herança direta do patriarcado, que há mais de dois mil anos posiciona os homens no centro do poder e relega as mulheres à subordinação. O mais grave é que esse sistema não foi superado com a modernidade — apenas se disfarçou, adaptando-se aos novos contextos. Ainda opera, silenciosamente,nos julgamentos morais e nos relacionamentos abusivos.

O contexto brasileiro é especialmente alarmante. Apesar da Lei do Feminicídio — sancionada, em 2015, pela presidente Dilma Rousseff com o objetivo de agravar as penas para crimes motivados por razões de gênero —, o Brasil ocupa hoje a terceira posição entre os países da América Latina com as maiores taxas de feminicídio, atrás apenas de El Salvador e Colômbia. Em dez anos de vigência da lei, mais de 11 mil mulheres foram assassinadas por razões de gênero. Em 2025, já são 1.459. Os dados mostram que o avanço jurídico, necessário, não tem sido suficiente para conter aescalada de mortes, exigindo ações concretas e coordenadas de prevenção e
enfrentamento.

Precisamos desconstruir a objetificação da mulher — uma dinâmica que se manifesta desde o olhar invasivo e as piadas de teor sexual até a violência física, psicológica e o assassinato. Nada disso é banal. Tudo faz parte de uma mesma cultura de dominação.

Mudar essa realidade exige comprometimento coletivo: do Estado, com políticas públicas eficazes; das escolas, com educação para a equidade; dos meios de comunicação, com responsabilidade na informação; e de cada um de nós, no enfrentamento do machismo cotidiano e de valorização da vida das mulheres.

Não se trata apenas de proteger vidas — embora isso por si só já seja razão suficiente — ou romper com estereótipos de gênero e preconceitos enraizados, mas de construir uma sociedade na qual todas as pessoas possam existir plenamente, com segurança, dignidade e liberdade.

*Suzete Nocrato

Jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

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