“Sanções ameaçam programa que levou médicos a 1.794 municípios nordestinos, reduziu internações e gerou atendimento em áreas rurais, quilombolas e no Semiárido”, aponta a jornalista Sara Goes
Confira:
Eu tinha nove anos e, pela primeira e única vez, estava empolgada com a Copa do Mundo, repetindo os nomes dos jogadores como se fossem versos de música. Naquele mesmo ano, marchei com meu pai nas campanhas do PT no Ceará, até ver a esperança virar frustração com a vitória de Fernando Henrique Cardoso. Em casa, a TV ligada em desenhos de qualidade duvidosa dividia espaço com a colher de soro caseiro, presença comum no Nordeste dos anos 1990, enquanto na escola aprendíamos, junto com o abecedário, a identificar sintomas da cólera e decorar as formas de preveni-la. Em 94 o Brasil se tornou tetra e Fortaleza registrou mais de 10 mil casos de cólera, quase 70% dos casos no Brasil. Essa convivência com a doença era reflexo de uma década em que epidemias como cólera, dengue, tuberculose, hanseníase, leishmanioses e esquistossomose moldavam o cotidiano e escancaravam a precariedade do saneamento, da água potável e do acesso a médicos.
Foi nesse cenário que, quase vinte anos depois, o Programa Mais Médicos nasceu como resposta direta a um problema histórico: a ausência crônica de profissionais de saúde em regiões pobres, rurais e periféricas. Antes dele, o Nordeste, com 27,6% da população brasileira, contava com apenas 17,8% dos médicos do país, e em 1.794 municípios, a maioria nordestinos, jamais houve um médico residente. Essa ausência se traduzia em diagnósticos tardios, agravamento de doenças crônicas e taxas elevadas de mortalidade infantil e materna. Tentativas anteriores de interiorização fracassaram, como o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica, que conseguiu preencher apenas 29% das vagas ofertadas em áreas vulneráveis.
A entrada dos médicos cubanos, viabilizada por cooperação internacional, foi decisiva para romper esse ciclo. Entre 2013 e 2014, 4.716 profissionais chegaram ao Nordeste, quase 80% deles cubanos, dispostos a trabalhar em localidades que brasileiros não procuravam. Sessenta e três por cento desse contingente foi direcionado a municípios com pelo menos 20% da população em extrema pobreza. O Semiárido, com os piores indicadores socioeconômicos e os maiores desafios logísticos, recebeu 2.500 médicos, o equivalente a 53% de todos os destinados à região.
O impacto municipalizado foi profundo. Em cidades com até 20 mil habitantes e baixo índice de desenvolvimento humano, a presença de médicos em tempo integral ampliou de forma inédita o acesso à atenção primária. A cobertura da Estratégia Saúde da Família chegou a praticamente todos os municípios de menor porte, as consultas médicas aumentaram mais de 19% e as internações por doenças sensíveis à atenção básica, como diarreias e gastroenterites, caíram 35%. Comunidades quilombolas receberam 413 médicos, 9% do total regional, e os seis Distritos Sanitários Especiais Indígenas passaram a contar com 54 profissionais, alterando a capacidade de atendimento de populações historicamente excluídas.
Agora, esse legado é alvo de sanção estadunidense que não mira diretamente os médicos cubanos, mas brasileiros ligados à formulação e execução da política. Foram atingidos o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, Mozart Júlio Tabosa Sales, o coordenador de projetos internacionais do Ministério da Saúde, Alberto Kleiman, e, de forma indireta, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, cuja esposa e filha de 10 anos tiveram vistos revogados sob a acusação de cumplicidade em práticas de trabalho coercitivo.
Sob o pretexto de punir violações trabalhistas, a medida atinge uma política que reduziu desigualdades históricas e fortaleceu a resposta do Sistema Único de Saúde em áreas mais vulneráveis. É um ataque que não apenas ignora os resultados concretos do programa, mas também ameaça um dos poucos mecanismos capazes de corrigir a má distribuição de médicos no Brasil, especialmente no Nordeste, onde a memória das crises sanitárias ainda é parte viva da experiência coletiva.
Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net