“A Argentina de Milei” – Por Dalton Rosado

Javier Millei é o presidente da Argentina. Foto: Reprodução

Com o título “A Argentina de Milei”,eis artigo de Dalton Rosado, advogado e escritor. “Ao custo de grandes sacrifícios do povo argentino, o liberalismo de Javier Milei promove a melhoria das contas públicas no sentido de tornar o Estado minimamente vivo para fazer face aos interesses do capital na conjuntura local e internacional de modo a satisfazer as exigências do Fundo Monetário Internacional – FMI – onde obteve novos empréstimos de U$ 20 bilhões, mas no sentido de pagar os juros da dívida pública argentina de U$ 471 bilhões com juros anuais de US$ 22 bilhões (cerca de 5% ao ano)”, expõe o articulista.

Confira:

Não há nada de novo nas ações político-governamentais de Javier Milei, a não ser a agressividade de agora no velho projeto liberal clássico capitalista do Estado mínimo voltado para a regulamentação jurídica e econômica das regras capitalistas de mercado, com as finanças públicas advindas dos impostos equilibradas dentro do figurino dos gastos inferiores a essa mesma receita, com aparato militar forte e sem maiores preocupações com as demandas sociais.

Alguns chamam de neoliberal, expressão que considero inadequada por seguir um receituário clássico antigo, que vem desde os tempos da doutrina econômica mercantilista do “laissez-faire” do economista francês Jean-Baptiste Colbert, 1681, que consiste na crença (equivocada) de que o .livre mercado (a mão invisível de Adam Smith – 1793-1790) tudo equaliza e traz prosperidade.

O capitalismo cresce como um monstro com obesidade mórbida que cada vez mais precisa ser alimentado, sem que a grande maioria dos seus alimentadores participem integralmente do banquete, mas somente até o momento em que escasseiem os recursos para alimentá-lo e ele definhe numa autofagia bárbara belicosamente perigosa.

A Argentina antes dos últimos 80 anos, que coincidem com a fim da segunda guerra mundial e houve a ascensão do militar Juan Domingos Peron ao poder político portenho de 1946 a 1955, desfrutava de um bem-estar social que vinha desde o começo do século quando era considerada “a Paris da América do Sul” e “celeiro do mundo”.

Com fortes simpatias fascistas (muitos nazistas foram acolhidos por lá no pós-guerra), fortalecendo o movimento sindical trabalhista que dava sustentação política ao partido peronista (Peron voltaria ao governo de 1973 a 1974, quando faleceu aos 78 anos), com terras fertilíssimas, clima favorável, e uma população alfabetizada e culta acima dos padrões sul-americanos, a Argentina, a partir de 1946, começou um processo populista capitalista eleitoral decadente que foi ainda piorado com a ascensão ao poder de uma ditadura militar que derrubou o peronismo (deposição de Isabelita Perón) e durou cerca de sete anos com assassinatos de milhares de adversários e uma guerra genocida nas Ilhas Malvinas (1976 a 1983), quando foi restaurada a democracia burguesa sob os parâmetros populistas de antes.

Com decadência acentuada ao final de 2023 enfrentando inflação de 211,4% no ano; queda no PIB de 1,6%; e com o dólar estadunidense valendo 800 pesos argentinos, a Argentina viu o populismo político dar margem à ascensão política da extrema direita com seu velho discurso liberal clássico travestido de “libertário” brandindo uma “motosserra” contra “a casta política argentina” e seu Estado perdulário.

Assim, Javier Milei obteve apoio eleitoral para o seu projeto político que nasce da desesperança com uma falsa promessa capitalista de redenção, principalmente entre os jovens (inexperientes pela própria idade e ensinamentos educacionais curriculares básicos que positivam o negativo), que no mundo todo tem sido o segmento populacional mais atingido pelo desemprego estrutural (taxa mundial de 12,8%) e a desesperança da fase do limite de expansão do capitalismo mundo afora.

Do significado da trajetória política e econômica da argentina podemos extrair ensinamentos valiosos, quais sejam:

– que a administração do aparelho de estado, moldado para servir de suporte ao capitalismo opressor (e não existe capitalismo humano e bonzinho), não consegue ser usado para ser o seu oposto, ou seja, servir simultaneamente ao capital e ao atendimento das demandas sociais;

– que o capitalismo tem regras absolutistas de funcionamento, ou seja, a sua necessária lógica de reprodução continuada e aumentada obedece aos critérios rígidos de produção e exploração concentrada da riqueza abstrata (sistema produtor de mercadorias), e que a “boa” administração do aparelho estatal diante de tais regras será sempre um serviço à ordem capitalista;

– que a esquerda se descredencia perante a coletividade quando se obriga ao populismo numa tentativa de acender uma vela a Deus (seus bons propósitos humanistas) e outra ao diabo (administrar obedientemente segundo regras capitalistas o aparelho de estado cobrador de impostos a uma população exaurida, sob pena de inflação gerada pelo descontrole das contas públicas, estimulando o desenvolvimento capitalista com o aumento da massa de extração de mais valia e, agora, mecanizando a produção de mercadorias com desemprego estrutural);

– que ao não negar as categorias capitalistas básicas (dinheiro, trabalho abstrato, estado, mercadorias e mercado), mas com elas convivendo de modo bem-intencionado, fracassam no sentido do provimento das aspirações sociais coletivas criadas pelo sub-reptício discurso de libertação NO capitalismo, e não pela libertação DO capitalismo.

E daí? O liberalismo clássico resolve o problema? É evidente que NÃO!

Ao custo de grandes sacrifícios do povo argentino, o liberalismo de Javier Milei promove a melhoria das contas públicas no sentido de tornar o Estado minimamente vivo para fazer face aos interesses do capital na conjuntura local e internacional de modo a satisfazer as exigências do Fundo Monetário Internacional – FMI – onde obteve novos empréstimos de U$ 20 bilhões, mas no sentido de pagar os juros da dívida pública argentina de U$ 471 bilhões com juros anuais de US$ 22 bilhões (cerca de 5% ao ano).

Na mesma toada de sacrifícios populares, ceteris paribus, oferece ao capitalismo internacional oportunidades de compra financiada pelo capital de estatais, e com isso proporcionar lucros ao capital mundial carente de reprodução, sem que isso represente qualquer significativa melhoria social coletiva, ao mesmo tempo que em algumas atividades de monopólio sempre represente queda na qualidade de serviços e aumento de preços.

Representa aumento do desemprego nacional, hoje em 6,4%, maior do que os 5,7% quando Milei assumiu o governo, além do que mais da metade da população argentina se encontra abaixo da linha da pobreza com rendimento domiciliar individual de R$ 665,00, segundo o INDEC (o IBGE deles), inferior à renda dos brasileiros.

Os funcionários públicos tiveram seus salários reduzidos e os pensionistas foram obrigados a fazer protestos contra a redução drástica de suas pensões, e com a queda de rendimentos veio também a queda da economia argentina em 2024 (há previsões de recuperação em 2025, a conferir). Além de tudo, a Argentina mantém uma taxa de juros de 32% e com previsão de taxa ainda alta de inflação.

Em que pese as melhorias relativas decorrente da queda da inflação (117,8 em 2024 e nos atuais 55,9% nos últimos 12 meses, ainda muito alta), que é o maior confisco de salários dos trabalhadores, os baixos salários e persistente nível de desemprego representam uma desaprovação popular na faixa de 45,9% para uma taxa de aprovação de 45,3%, o que demonstra insatisfação com o governo num país politicamente dividido, em que pese a vitória da partido de Milei, Liberdade Avança, de extrema direita liderado por Manoel Ardoni, com 30% dos votos, nas últimas eleições legislativas estaduais de Buenos Aires.

O que se pode concluir é que a Argentina, país rico em riquezas materiais (terras férteis, minerais, populoso e culto) vive a tragédia do fracasso político e econômico do capitalismo, a ponto de grande parte de sua população viver abaixo da linha da pobreza, ainda que o enganador cálculo da renda per capita (porque mistura renda alta com renda baixa dos pobres e faz uma média) afirme que os Argentinos ganhem por ano em média U$ 12.500,00, maior do que a renda per capita brasileira calculada em torno de U$ 10.000,00.

Sob o liberalismo clássico de Javier Milei a economia e as contas públicas tendem a se estabilizar, mas com imensos danos à coletividade, ou seja, os argentinos vão viver numa casa menos desarrumada, mas com os estômagos vazios e descamisados no frio cortante do sul.

A doutrina política de Javier Milei converge com outras de naturezas genocidas, daí porque aplaude Bibi Netanyahu, Donald Trump, Vladimir Putin, Recep Tayyip Erdogan, Nayib Bukele, entre outros exemplos repugnantes.

A onda liberalista de Javier Milei cairá por terra com a insatisfação popular que inevitavelmente vira após a desilusão com relativa aceitação de sacrifícios em face de uma promessa de bonança que nunca se realizará sob os seus pressupostos liberais capitalistas.

Isso é o capitalismo, seja liberal ou keynesiano: sempre ruim, e que agora está se tornando péssimo e inviável; daí a necessidade de se superar o seu estado serviçal; sua lógica abstrata e suas práticas empíricas.

*Dalton Rosado

Advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980.

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