Com o titulo “A autonomia como estratégia”, eis artigo de Alex Araújo, economista, ex-secretário estadual de Desenvolvimento Local e Regional e egresso do Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia, da Escola Superior de Guerra. “É importante reconhecer que o Brasil, sem ser uma potência militar e com uma inserção internacional ainda parcial, possui capacidade limitada de influência nos grandes temas da agenda global.”, expõe o articulista.
Confira:
Na última quinta-feira (7), em meio às preocupações com os efeitos do tarifaço anunciado pelos Estados Unidos sobre produtos importados da China, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), reuniu-se em Brasília com o embaixador chinês Zhu Qingqiao. O encontro buscou fortalecer as relações comerciais com o país asiático, com foco na abertura do mercado chinês para produtos cearenses impactados pelas medidas norte-americanas. A movimentação do governo estadual é compreensível, dado o ambiente internacional incerto e a necessidade de proteção
aos interesses econômicos locais.
No entanto, essa aproximação — que ocorre num momento de forte tensão geopolítica entre as duas maiores potências do mundo — levanta uma série de questões importantes. Estaríamos ocorrendo o risco de romper com a tradição diplomática brasileira de não alinhamento automático? É prudente sinalizar uma adesão mais profunda à China em um momento em que os Estados Unidos endurecem sua posição comercial? Os produtos que o Ceará deseja exportar são realmente compatíveis com a demanda chinesa? E mais: num mundo cada vez mais multipolar, não seria mais estratégico diversificar as parcerias em vez de aprofundar a dependência com um só destino?
A tradição do equilíbrio: a diplomacia brasileira e o não alinhamento
A política externa brasileira, sobretudo desde o período pós-Segunda Guerra Mundial, tem sido marcada por uma estratégia de não alinhamento automático às grandes potências. Em vez disso, o país adotou uma postura de autonomia ativa, combinandopragmatismo comercial com uma defesa firme do multilateralismo, da solução pacífica de conflitos e da diversificação de parceiros.
Essa tradição permitiu ao Brasil atuar com protagonismo em fóruns internacionais,como a ONU, OMC e G20, e manter relações equilibradas tanto com os EstadosUnidos quanto com a China, a União Europeia e países do Sul Global. Romper comessa lógica em favor de uma adesão mais explícita a um dos polos de poder podecomprometer esse capital diplomático construído ao longo de décadas. A política externa brasileira, sobretudo desde o período pós-Segunda Guerra Mundial, tem sido marcada por uma estratégia de não alinhamento automático às grandes potências. Em vez disso, o país adotou uma postura de autonomia ativa, combinando pragmatismo comercial com uma defesa firme do multilateralismo, da solução pacífica de conflitos e da diversificação de parceiros.
É importante reconhecer que o Brasil, sem ser uma potência militar e com uma inserção internacional ainda parcial, possui capacidade limitada de influência nos grandes temas da agenda global. Essa tradição de autonomia, na prática, reflete tanto uma escolha estratégica quanto as restrições objetivas enfrentadas pelo país no cenário internacional.
Essa abordagem permitiu ao Brasil atuar com protagonismo em fóruns internacionais, como a ONU, OMC, BRICS e G20, e manter relações equilibradas tanto com os Estados Unidos quanto com a China, a União Europeia e países América Latina. Romper com essa lógica em favor de uma adesão mais explícita a um dos polos de poder pode comprometer esse capital diplomático construído ao longo de décadas.
O risco de retaliações e ruídos com os Estados Unidos
O contexto atual é particularmente delicado. Os EUA não apenas elevaram tarifas sobre produtos chineses em setores estratégicos — como semicondutores, baterias e veículos elétricos — como vêm pressionando países aliados a revisar suas relações comerciais com Pequim. Uma movimentação brasileira mais explícita em direção à China pode ser interpretada, em Washington, como um gesto de retaliação indireta ou como uma reaproximação em bloco com os rivais geopolíticos dos norte-americanos. Esse tipo de sinalização pode trazer consequências para os interesses brasileiros, inclusive no Ceará. Os EUA são, ainda hoje, importante fonte de investimentos, turismo, cooperação tecnológica e mercado comprador para vários produtos nacionais. Criar ruídos diplomáticos ou comerciais com esse parceiro pode representar um tiro no pé.
A pauta exportadora do Ceará: oportunidades e limitações com a China
Outro ponto crucial é a viabilidade prática de substituir o mercado norte-americano pelo chinês para os produtos cearenses. A pauta exportadora do Ceará é marcada por produtos perecíveis, como frutas, amêndoas e pescados, calçados, confecções e aço — itens cuja compatibilidade com a demanda chinesa é limitada.
Produtos alimentares, por exemplo, enfrentam grandes barreiras fitossanitárias, logísticas e regulatórias no mercado chinês. Além disso, a China é um dos maiores produtores mundiais de aço e importa o insumo em proporções pequenas e muito específicas, o que reduz a margem de penetração para o setor siderúrgico cearense.
Os calçados e confecções, por sua vez, enfrentam competição feroz de produtores asiáticos com estruturas de custos mais agressivas. Isso indica que o movimento cearense, embora legítimo em termos políticos, pode não trazer os resultados esperados no curto prazo.
A oportunidade da multipolaridade
Enquanto o mundo se reorganiza em torno de uma lógica multipolar, com diferentes centros de gravidade, o Brasil está em posição privilegiada para aproveitar esse novo equilíbrio. Em vez de buscar refúgio em um dos polos, é possível construir uma política externa baseada na diversificação inteligente de parcerias, respeitando os interesses nacionais e regionais.
A África, por exemplo, representa uma fronteira estratégica de comércio, investimento e cooperação. É um continente com crescimento populacional acelerado, urbanização crescente e uma demanda emergente por alimentos, vestuário, infraestrutura, tecnologia e serviços — áreas em que o Brasil e o Ceará podem oferecer soluções.
Muitos países africanos e latino-americanos compartilham laços históricos e culturais com o Brasil, além de apresentarem demandas crescentes em setores estratégicos. A proximidade geográfica com nações da América Latina, como Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, é uma vantagem significativa, facilitando o escoamento deprodutos, a integração logística e a construção de acordos bilaterais ágeis. Para oCeará, isso amplia as possibilidades de exportação de calçados, alimentos e produtos siderúrgicos para mercados menos restritivos que os EUA e a China, além de
fortalecer a presença institucional do estado em regiões vizinhas e estratégicas.
Proposta de posicionamento para o Brasil (e o Ceará)
Diante desse cenário, é possível delinear um posicionamento equilibrado e propositivo, que combine defesa dos interesses econômicos com visão estratégica de longo prazo:
1. Autonomia estratégica e diplomacia ativa.
O Brasil deve manter sua tradição de autonomia diplomática, não se alinhando automaticamente nem aos EUA nem à China, mas buscando espaço de negociação em fóruns multilaterais e reforçando seu papel como articulador em um mundo multipolar.
2. Defesa do multilateralismo e das regras do comércio internacional.
O tarifaço norte-americano deve ser contestado nos marcos legais da Organização Mundial do Comércio (OMC), evitando uma “guerra comercial por procuração” e buscando arbitragem internacional sempre que necessário.
3. Ampliação de mercados alternativos.
O Brasil deve reforçar sua presença na África, América Latina, Sudeste Asiático e países árabes, com ações de diplomacia econômica, promoção comercial e redução de barreiras. O Ceará, em especial, pode articular rotas comerciais com portos africanos, aproveitando a localização geográfica privilegiada do estado.
4. Fortalecimento da capacidade exportadora local.
Além de buscar novos mercados, é preciso investir na qualificação dos produtos cearenses, adequando padrões sanitários, ampliando a infraestrutura de escoamento e incentivando a inovação em setores como agronegócio, vestuário, alimentos processados e siderurgia.
5. Relacionamento com a China com critério e reciprocidade.
O Brasil pode sim estreitar relações com a China, desde que com critérios claros, respeito à legislação ambiental e trabalhista, e defesa dos interesses nacionais, evitando que o país se torne um mero fornecedor de commodities ou um mercado passivo para produtos industrializados chineses.
O mundo é grande demais para alianças pequenas
O movimento do governo do estado tem valor político e simbólico: mostra que o Ceará está atento aos impactos do cenário global e disposto a agir. No entanto, o momentoexige prudência e visão estratégica. Uma aproximação plena com a China, em resposta às medidas norte-americanas, pode comprometer a autonomia do Brasil, gerar retaliações e resultar em expectativas comerciais frustradas, dado o perfil da nossa pauta exportadora.
Mais do que escolher entre China e EUA, o Brasil deve escolher a si mesmo: sua autonomia, sua capacidade de articulação global e sua diversidade de parceiros. O mundo está se reorganizando em torno de múltiplos centros de poder, e essa é uma excelente notícia para países com vocação diplomática e econômica como o nosso. A tarefa, agora, é aproveitar esse novo contexto para garantir que estados como o Ceará tenham acesso ampliado a mercados viáveis, com segurança jurídica, equilíbrio diplomático e ganhos reais para sua população. Esse é o caminho para que o Brasil
cresça com soberania, em um mundo que precisa, cada vez mais, da nossa maturidade.
*Alex Araújo,
Economista, ex-secretário estadual de Desenvolvimento Local e Regional e egresso do Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia, da Escola Superior de Guerra.