Com o título “A bet do pobre: lucrando com a ilusão e a miséria”, eis artigo de Alex Araújo, economista e ex-secretário de Desenvolvimento Regional do Estado do Ceará. “A principal crítica é a insegurança jurídica, pois, apesar da decisão do STF que retirou o monopólio da União, a competência dos municípios para legislar sobre o tema não foi claramente definida. Isso cria um vácuo legal perigoso, colocando em risco a estabilidade dos serviços públicos que dependeriam dessas receitas”, expõe o articulista.
Confira:
A recente corrida de municípios brasileiros para criar suas próprias loterias e plataformas de apostas, as chamadas "bets", conforme descrito em matéria do Diário do Nordeste, em sua edição de 8 de setembro, cita casos de doze prefeituras cearenses. Embora a promessa de uma nova fonte de receita para os cofres públicos seja tentadora, a iniciativa é repleta de fragilidades jurídicas, éticas e sociais, representando um retrocesso em termos de ação governamental.
A principal crítica é a insegurança jurídica, pois, apesar da decisão do STF que retirou o monopólio da União, a competência dos municípios para legislar sobre o tema não foi claramente definida. Isso cria um vácuo legal perigoso, colocando em risco a estabilidade dos serviços públicos que dependeriam dessas receitas.
Soma-se a isso o sério risco para a saúde financeira pública, já que as receitas de apostas são voláteis e imprevisíveis, podendo levar a crises orçamentárias e a cortes abruptos em áreas essenciais como saúde e educação.
Além disso, a maioria das prefeituras não possui a experiência e a estrutura necessárias para operar e fiscalizar um mercado tão complexo, o que aumenta o potencial para fraudes, lavagem de dinheiro e manipulação de resultados. A exploração dessas atividades também levanta questões morais e sociais. A expansão das apostas a nível local facilita o acesso e pode aumentar o número
de casos de vício em jogo, um problema de saúde pública com custos que podem superar a receita arrecadada.
Financeiramente, as loterias são consideradas um “imposto regressivo”, pois a maior parte da receita vem da população de baixa renda, que, muitas vezes, enxerga no jogo uma falsa esperança. Ao financiar serviços públicos com essa fonte, os municípios, na prática, exploram a parcela mais vulnerável da população.
Por fim, a falta de fiscalização rigorosa e centralizada abre as portas para a corrupção e acordos ilícitos, comprometendo a integridade da gestão pública e tornando o sistema vulnerável, como evidenciado por casos recentes de uso de plataformas de apostas para lavagem de dinheiro. Além das críticas jurídicas e financeiras, a questão moral é central. Ao se tornarem operadoras de apostas, as prefeituras estão fazendo um pacto com uma atividade que prospera sobre o vício, a ilusão e a exploração da esperança.
Especialmente grave é o fato de que a maior parte das apostas é feita por pessoas de baixa renda. Pesquisas e estudos mostram a relação direta entre vulnerabilidade social e o comportamento de apostas.
A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, embora não se concentre exclusivamente em apostas, mostra a dificuldade de gestão financeira em lares mais pobres. Estudos de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (OMS) classificam o vício em jogos, ou ludopatia, como um transtorno comportamental grave, com consequências devastadoras como
endividamento, depressão e desestruturação familiar.
Dados de plataformas de apostas no Brasil, embora não sejam públicas, indicam uma base de jogadores vasta, com milhões de contas ativas, muitasdas quais fazem pequenas e frequentes apostas. Um estudo da Universidade de Brasília (UnB) sobre a ludopatia aponta que o perfil do apostador compulsivo muitas vezes se encaixa em grupos com menor acesso à educação e a oportunidades de emprego, buscando no jogo uma saída rápida para problemas financeiros.
O argumento de que o dinheiro arrecadado será usado para financiar políticas públicas, como saúde e educação é, no mínimo, paradoxal. É como se a prefeitura estivesse dizendo: "Vamos financiar a saúde pública com o dinheiro das pessoas que terão sua saúde mental e financeira prejudicadas pelo vício que nós mesmos estamos incentivando". Essa “troca” levanta uma questão ética profunda: é moralmente aceitável construir o bem-estar social sobre a ruína individual e familiar?
A corrida das prefeituras pelas apostas municipais revela uma busca desesperada por novas fontes de renda, mas a estratégia é falha em múltiplos níveis. Ela ignora os riscos jurídicos, a falta de capacidade técnica e, mais importante, a imoralidade de lucrar com o vício dos mais vulneráveis.
Em vez de apostar em um futuro incerto e eticamente questionável, os municípios deveriam focar em soluções sustentáveis e justas, como aprimorar a arrecadação de impostos, otimizar a gestão de recursos e buscar parcerias transparentes que realmente beneficiem a comunidade, sem explorar suas fragilidades. A sociedade precisa questionar: até que ponto a promessa de dinheiro rápido justifica o abandono da responsabilidade ética e social?
*Alex Araújo
Economista e ex-secretário de Desenvolvimento Regional do Estado do Ceará.
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Meus cumprimentos ao Alex pelo oportuno e consistente trabalho.