“A arte é de viver da fé, mesmo não sabendo fé em quê”, aponta o músico Ricardo Nêggo Tom
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Muito pior do que qualquer questionamento à fé das pessoas, é observar em silêncio o quanto elas se distanciam da realidade através de suas crenças. Não é simplesmente uma questão de colocar um grilo na cuca do outro, mas tentar provocar reflexão acerca daquilo que ele se propõe a defender com uma verdade absoluta para si e para os demais. Como ex-católico praticante, eu sou grato a cada pessoa que conseguiu me fazer enxergar o mundo real. Um mundo onde as minhas crenças religiosas nunca puderam, de fato, mudar nada ao meu redor. Um mundo onde ninguém nunca foi e nunca será santo, até mesmo por uma questão de sobrevivência que muitas vezes se impõe a qualquer tentativa de existência santificada.
É mister fazermos uma auto crítica até chegarmos à conclusão que a nossa fé – seja ela qual for – só diz respeito aos nossos interesses pessoais, materiais ou espirituais, e quase nunca ao bem estar coletivo. Uma prova disso é quando uma determinada doutrina religiosa invalida ou demoniza a existência de pessoas que não se submetem a ela, atribuindo a esses seres humanos uma condição de imoralidade, ilegalidade, inadequação ou aberração. A sua fé nessa doutrina satisfaz exclusivamente ao seu ego, ou a um grupo de pessoas que se identificam egoicamente. Santos narcisos que enxergam o mundo através do espelho embaçado de suas alcovas. Santos que oscilam entre o céu e o inferno, a pureza e a maldade, quando atendem às preces de seus iguais e ignoram os apelos dos diferentes.
É possível que a realidade da vida não fosse suportável para a maioria das pessoas que se agarram à fé para sobreviver. Neste caso, é importante que tenhamos compreensão com tal fraqueza. Isto é sinônimo de humanidade. No entanto, é mais importante ainda que mostremos a essas pessoas o mundo como ele é, deixando que elas optem por seguir suas vidas como melhor lhes convier, mas sem deixar que a sua fé cega e, por muitas vezes, irracional, nos contamine. Alguém pode tentar identificar uma certa pretensão deste articulista quando eu proponho mostrar a realidade para pessoas alienadas pela fé. No entanto, a realidade se impõe naturalmente a qualquer tipo de crença, ideologia ou opinião. Ainda que eu tenha fé que possa frutificar morangos num pé de abacate, isso não acontecerá, porque a realidade frutífera daquela árvore não permite.
Quando somos condicionados a crer, por exemplo, que Deus está no controle de tudo, e tudo o que está acontecendo está sob sua permissão e anuência, estamos contradizendo a bondade divina que pregamos. Como imaginar um Deus de amor que permitiu séculos de escravização africana, anos de extermínio de judeus, e que hoje está permitindo o extermínio de palestinos em Gaza? Não seria necessário passar a crer num Deus diferente? Que sentido faz rezar pelo fim de uma guerra se o Deus para o qual as orações são destinadas está permitindo que ela aconteça? Se Deus sabe o que faz, qual o sentido de pedirmos a ele para que as coisas sejam diferentes? E se “Deus quer assim”, qual santo seria capaz de interceder por nossas súplicas? Seria um santo maior do que Deus? Ou seria um santo capaz de fazer Deus mudar de ideia?
Como é possível observar, as aplicações propostas são muito mais lógicas do que pretensiosas. Obviamente, quando estamos falando de fé, consequentemente a lógica precisa ser descartada. A fé remove montanhas. A lógica não. A fé pode nos fazer acreditar naquilo que não existe. A lógica não. A fé pode nos fazer acreditar que somos escolhidos por Deus. A lógica, sobretudo, aliada ao nosso comportamento no dia a dia com relação ao outro, não. A fé pode nos fazer acreditar que somos melhores e superiores àqueles que não tem fé. A lógica, principalmente, quando observamos como quem não tem fé encara a realidade do mundo, não. Ter ou não ter fé é uma questão de escolha, e escolhas também são sagradas porque dizem respeito à liberdade de existência de cada um. O comportamento nunca será padronizado a partir da fé, porque a lógica da realidade se sobrepõe a crenças.
Sem pretensão de polemizar, mas podemos dizer que o cristianismo é meio narcísico quando nos apresenta como única e realmente válida a fé em Jesus. Quando dizemos que só Jesus salva, e que só há prosperidade, paz e alegria em Jesus, estamos não apenas colocando em condição de superioridade os cristãos, mas também contrariando a lógica da realidade. Basta observarmos quantas pessoas sofrem com fé em Jesus, e quantas outras tantas são felizes crendo em Buda, Shiva, Exu ou em nada, por exemplo. O que determina o seu estado de felicidade é um conjunto de fatores dentre os quais a fé é apenas mais um componente. Porém, a alienação religiosa tenta invalidar a existência plena de qualquer pessoa que não esteja submissa à fé em alguma crença. O estar fraco é estar forte preconizado pelo apóstolo Paulo, é um dilema lógico que a fé se propõe a resolver. Quando estou fraco, não posso ter forças. Mas a fé me faz superar a fraqueza. Isso é positivo, e até vital para muitas pessoas.
A fé também pode estar relacionada à sua força interior, ao seu desejo de superar as dificuldades, ao seu espírito de combate para lutar pela sobrevivência. E isto não está necessariamente relacionado a Deus, a santos ou a demônios. Do contrário, os ateus estariam sempre derrotados a cada momento de fraqueza que tivessem. O fato é que cada um de nós carregamos conosco uma ligação com a espiritualidade, que alguém muito esperto inventou de doutrinar de acordo com os seus interesses políticos, sociais e pessoais. Somos incrédulos por natureza, mas a lógica da realidade nos torna crédulos naquilo que estamos vendo diante de nossos olhos, enquanto a fé nos faz crer naquilo que não sabemos se de fato é real. “Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet.”, disse o já saudoso Luis Fernando Veríssimo, com seu humor peculiar e genial. Mas há quem tenha crido e imaginado que pudesse tocá-la algum dia. Mas nem tudo é uma questão de fé.
Eu tenho fé, mas não abro mão da lógica. Talvez este seja o segredo da sobrevivência sadia num mundo cada vez mais insano e cheio de crenças infundadas por todos os lados. Talvez, nós sejamos os santos padroeiros de nossas vidas. Parafraseando Verissimo, só acredito num Deus que possa ajudar a todos igualmente. Não acredito, por exemplo, no deus de Malafaia, Macedo e de outros picaretas da fé. Um deus que enche de bênçãos supostos “ungidos”, e deixa à míngua pessoas que têm mais fé nele do que tais charlatões. Para quem é mais fácil ter fé: para quem tem casa, comida e dinheiro, ou para quem está em situação de rua e agradece a Deus quando um padre Júlio Lancelotti da vida aparece com um prato de comida para lhe oferecer? E mesmo assim, muitos “abençoados por Deus” defendem o extermínio social de pessoas em condição de vulnerabilidade.
Neste mundo de novos santos e convenientes canonizações, devemos nos questionar sobre o porquê de crianças e adolescentes pretos mortos por balas perdidas nas periferias da vida, não serem considerados objetos de santificação. Estes sim morreram inocentes pagando pelos pecados de um mundo violento e desumano. Violência social, racial e econômica “permitida” por Deus que, mesmo no “controle” de tudo, não os poupou de tamanho sofrimento e dor. Não mereceriam estas pequeninas vítimas de tamanha crueldade uma canonização? Não são eles mártires de um estado racista e policialesco, cuja maioria se diz cristã e tem fé em Deus? Ou será que a calça jeans que eles usavam não estava no estilo dos novos santos? Ou será porque os seus pais não eram grandes empresários num país europeu? Ou será porque a cor da pele de seus corpos abatidos não combina com as dos santos deste mundo? Parafraseando agora Joãosinho Trinta, o santo carnavalesco da Beija-Flor: Mesmo invisibilizados, rogai por nós todos os santos pobres, pretos e periféricos que ainda crianças, jovens e adolescentes, experimentaram a morte neste calvário social que a fé e a lógica nos apresentam de formas bem distintas.
*Ricardo Nêggo Tom
Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas “Um Tom de resistência”, “30 Minutos” e “22 Horas”, na TV 247, e colunista do Brasil 247
Uma resposta
Só me resta pedir uma chuva de bençãos para esse Sr.
Fé e lógica não são excludentes.