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“A danosa profusão de leis”

Barros Alves é jornalista e poeta

“O poder real parece estar na mão de apenas um homem que passou longe de um pacto político chancelado por uma maioria, mesmo que sem o sacramento do voto”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves. Confira:

Considero, para começo de conversa, quão negativo é o número exagerado de artigos que contém a Carta Magna saída da Constituinte de 1988, fruto das emoções incontidas de grupos que se digladiaram mais pensando em seus interesses do que no futuro da nação brasileira. Dali saiu um documento com 250 artigos, a segunda maior Constituição do mundo, em que abundam direitos e falecem obrigações, vindo a surtir os indesejados efeitos a que temos observado nos anos recentes. Como se não bastasse o inchaço constitucional, os que desejam um Estado obeso empanturram a Carta de emendas, gorduras que a cada dia mais a desfiguram. Dito isto, vamos ao que interessa. E o que interessa é a crítica da profusão de leis que infestam o organismo do ordenamento jurídico brasileiro. Como se não bastasse termos uma Constituição engordada por dispositivos que bem poderiam compor a legislação infraconstitucional e, como dito, ainda mais a empanturrar-se de emendas a cada legislatura, constata-se, concomitantemente, uma ânsia desenfreada dos parlamentares de editarem leis que para nada servem. Pelo menos a grande maioria do que se aprova no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas é perfeitamente dispensável. Leis inconsequentes, ineficientes, desprezadas pela cultura do povo e pelo próprio Poder Judiciário. Leis que não pegam, como diz o vulgo. Até parece que assim procedem com o fito predeterminado de que as leis não devam ser obedecidas.

A este respeito vale lembrar que esse mal não afeta só o legislativo brasileiro e nem é de agora. Não poucos pensadores já se ocuparam da crítica a esse problema. O avermelhado Ferdinand Lassale, por exemplo, (O Que é uma Constituição, 1864) já identifica que a edição de uma profusão de leis na Alemanha, sem que haja protestos, constatando que a lei certamente deve alterar a situação legislativa vigente, pois se tal não ocorrer no estatuto legal, “seria absolutamente supérflua e não teria o porquê promulgá-la.” Na Alemanha lassaliana havia chiadeira em relação a mudanças na Constituição. Mas, Lassale entendia que uma Constituição não passa de uma “folha de papel” onde está posta “a soma dos fatores reais de poder que governam o país.” Entre nós, por agora, nem uma coisa e nem outra. O poder real parece estar na mão de apenas um homem que passou longe de um pacto político chancelado por uma maioria, mesmo que sem o sacramento do voto. A não ser que haja um “pacto das catacumbas”, que jamais poderá ser chancelado por uma maioria escanteada.

Estamos a falar de profusão legislativa, com a consciência de que neste caso a quantidade significa inexoravelmente desqualificação do ordenamento, porque inchado fica de difícil digestão. Já no limiar do século XIX, Benjamin Constant (o francês, não o golpista brasileiro de 1889 que só nascera em 1836), observa com percuciência: “A proliferação de leis satisfaz quem as formula em função de duas inclinações humanas naturais: a compulsão que eles têm de agir e o prazer que auferem por se sentirem necessários. Toda vez que se encarrega um homem de realizar uma tarefa especial, ele normalmente faz mais do que menos. Aqueles que recebem a missão de prender vagabundos nas estradas principais ficam tentados a entrar em polêmica com todos os viajantes. OS ESPIÕES QUE NÃO DESCOBREM COISA ALGUMA, INVENTAM. Já foi constatado que basta a criação de um ministério com a responsabilidade de vigilância sobre conspiradores, para que se passe a falar com constância no país sobre conspiração, e se tenha sempre audiência. Aqueles que estão no governo querem estar sempre governando; E QUANDO POR CAUSA DA DIVISÃO DE PODERES, UM GRUPO DELES RECEBE O ENCARGO DE FAZER LEIS, NÃO É CAPA DE IMAGINAR QUE, POSSIVELMENTE, O FARÁ EM DEMASIA.” (Cf. “Princípios de Política Aplicáveis a Todos os Governos”, Editora Topbooks, RJ, 2007, pág. 129ss)

Constant chama a atenção para o fato de que a edição desenfreada de leis proibitivas e coercitivas, inclusive, não é vista pelas pessoas como inconveniente e mesmo danosa à sociedade, entendendo elas que no máximo essas leis “constrangem um pouco as liberdades individuais.” Ele contradita peremptoriamente este pensar equivocado das massas: “A PROLIFERAÇÃO DE LEIS, MESMO NAS CIRCUNSTÂNCIAS MAIS ORDINÁRIAS, FALSIFICA A MORALIDADE INDIVIDUAL (…) Quando uma lei “proíbe ações que não são criminosas ou demanda o cumprimento daquelas que não são obrigatórias em função de contrato anterior e que, em consequência, só dependem da vontade de tal governo, dois tipos de crimes e dois tipos de deveres são carreados para a sociedade: os que o são inerentemente E OS QUE O GOVERNO DIZ QUE SÃO. Quer os indivíduos deixem seus julgamentos subservientes ao governo, quer os mantenham com sua independência original OS EFEITOS PRODUZIDOS SÃO DESASTROSOS.” O autor segue em longa e procedente dissertação.

Pode-se depreender desse entendimento, aplicando-o conscientemente ao caso brasileiro, que a proliferação de leis tem sido extremamente danosa. E é por intermédio dessas leis que o Poder Judiciário vai fazendo seus malabarismos interpretativos para implantar uma ditadura em nosso País. A lei é usada para sacramentar o autoritarismo, é o argumento da legalidade de decisões absurdas e antijurídicas, que ferem de morte a Justiça. Na verdade, o Brasil caminha para os estertores finais da democracia e urge reação das consciências democráticas. A Constituição e as leis para nada mais valem. Porque l’Etat est le chauve!

Barros Alves é jornalista e poeta

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