Com o título “A democracia brasileira diante do espelho”, eis artigo de Cleyton Monte, cientista político e presidente do Instituto Centec. “O risco da PEC da blindagem é reeditar a tradição de impunidade e conciliação. Assim como em 1979, quando a anistia perdoou também os agentes da repressão, a democracia brasileira mostra-se incapaz de enfrentar com rigor os que atentam contra ela própria”, expõe o articulista.
Confira:
A história recente do Brasil escancara uma contradição que atravessa a própria ideia de democracia no país. Quase quatro décadas após o fim da ditadura, ainda não conseguimos modernizar nossas instituições nem atualizar os mecanismos de proteção aos valores democráticos. O resultado é a repetição de personagens e práticas que deveriam ter ficado no passado.
Os atos em defesa da democracia, realizados diante da ameaça de aprovação da chamada PEC da blindagem, revelam esse paradoxo. A proposta busca conceder anistia ampla aos envolvidos no 8 de janeiro, repetindo a lógica conciliatória que marcou a transição de 1979. De um lado, a mobilização popular trouxe de volta às ruas artistas que foram símbolos da luta contra o regime militar. Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil repetem, em outra chave, o papel que tiveram nos anos 1970 e 1980, reafirmando que a cultura segue como trincheira contra o autoritarismo. De outro lado, ressurgem no tabuleiro figuras políticas como Michel Temer e Aécio Neves, representantes de uma elite que simboliza a conciliação e o atraso. A presença deles mostra que parte da classe dirigente ainda insiste em velhas fórmulas de sobrevivência, incapaz de oferecer uma agenda renovadora.
Essa coexistência de vozes – os artistas que representam o sonho de uma democracia plena e políticos que encarnam suas limitações – explicita a dificuldade brasileira de reinventar a própria vida democrática. Nossas instituições ainda se movem por lógicas de acordos de bastidores, acomodações de cúpula e lideranças que não se renovam. Enquanto isso, a sociedade expressa demandas por participação, transparência e justiça que não encontram respostas efetivas no sistema político.
O risco da PEC da blindagem é reeditar a tradição de impunidade e conciliação. Assim como em 1979, quando a anistia perdoou também os agentes da repressão, a democracia brasileira mostra-se incapaz de enfrentar com rigor os que atentam contra ela própria.
O Brasil precisa escolher se continuará preso ao ciclo de conciliações que garantem sobrevida a velhas elites ou se terá coragem de atualizar suas práticas democráticas. A presença de Chico, Caetano e Gil nas ruas é um lembrete de que a democracia só avança quando a sociedade se mobiliza. Mas a persistência de Temer e Aécio no cenário é a prova de que ainda não rompemos com a política que prefere administrar o atraso em vez de construir o futuro.
*Cleyton Monte
Cientista político e presidente do Centec.