Com o título “A distópica alexandrina”, eis artigo de João Arruda, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará e sociólogo. “A OAB e a ABI, outrora ferrenhas defensoras da democracia, foram cooptadas vergonhosamente. O mundo jornalístico e jurídico encontra-se dividido”, expõe o articulista.
Confira:
A República brasileira vive um momento em que a realidade começa a ultrapassar a ficção. Aquilo que antes se lia com espanto nas páginas de romances distópicos como 1984, de George Orwell, por exemplo, começa a fazer parte do nosso cotidiano. O controle da narrativa, a imposição do pensamento único, a censura seletiva e a perseguição de opositores são elementos característicos e normais nos regimes autoritários em todo o mundo, e estão, assustadoramente, se tornando parte da paisagem institucional brasileira. O Brasil, para a nossa vergonha e desespero, já é o país que tem o maior número de presos políticos.
Infelizmente, estamos seguindo os caminhos da Oceânia orwelliana. Lá, eles levavam muito a sério o pressuposto de que “quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.” Nesse contexto, o Ministério da Verdade desempenhava um papel fundamental: reescrever a história, apagar fatos inconvenientes, fabricar uma realidade oficial inquestionável e projetar o futuro do país.
Aqui, membros do Judiciário, parte significativa do establishment e a grande mídia carcomida vêm assumindo esse papel ao criarem uma instância paralela de “curadoria da verdade”, onde apenas as narrativas oficiais convenientes são aceitas como legítimas, e tudo o que as contraria é imediatamente tachado como desinformação ou ameaça à democracia. Não temos mais espaço para o debate e nem para a pluralidade: há versões sancionadas dos fatos, validadas por decisões monocráticas, e a imposição de um discurso único que suprime vozes dissidentes nas redes sociais, nas ruas, nos parlamentos e até nas igrejas.
Nesse ambiente, o cidadão brasileiro vive sob o controle absoluto das narrativas do poder, que devem ser obedecidas e acatadas por todos. Assim como na Oceânia, o ato de pensar ou expressar algo fora do script determinado pelo Grande Irmão – o Big Brother tupiniquim – é visto como crimidéia e implica que o infrator pagará em campos de reeducação. O pensamento crítico é agressivamente criminalizado, e a dúvida, tipificada como ataque à democracia. Não se trata mais de punir atos ilegais, mas de controlar o próprio pensamento como condição para garantir a perpetuação do sistema.
Neste cenário, quem ousa divergir da “verdade oficial” arrisca-se a ser perseguido, banido das plataformas digitais, calado ou até preso — como se a mera opinião contrária fosse, por si só, um atentado à ordem pública. O crimidéia alexandrina se institucionalizou, e seu tribunal agora tem nome, endereço e toga.
A OAB e a ABI, outrora ferrenhas defensoras da democracia, foram cooptadas vergonhosamente. O mundo jornalístico e jurídico encontra-se dividido. Renomados juristas – entre eles Ivens Gandra Martins, que participou da redação da atual constituição brasileira- se rebelam publicamente, denunciando que ministros da Suprema Corte não respeitam a independência dos Poderes, extrapolando as funções que lhes são atribuídas. Para eles, a democracia, em sua essência, depende da separação dos Poderes, da liberdade de expressão e do respeito às garantias individuais. No entanto, o que se observa hoje é uma ruptura desse equilíbrio.
E eles têm razão. Alguns juízes da Suprema Corte vêm exercendo funções que ultrapassam os limites constitucionais: eles julgam, legislam, investigam, acusam e punem — muitas vezes sem o devido processo legal, sem contraditório e sem respeito à presunção de inocência.
No Brasil distópico, o nosso “Ministério da Verdade” mantém uma harmoniosa relação com o “Departamento do Amor”. Apesar do nome, ele nada tem a ver com afeto ou compaixão. É o Departamento responsável pela vigilância, repressão, tortura e controle total dos considerados inimigos do sistema. É o aparato de terror do regime; é o encarregado, em última instância, pela manutenção da obediência ao poder estabelecido — por meio da força, do medo e da destruição psicológica.
Quem vive no Brasil de hoje, está sempre sujeito a surpresas. Sob o pretexto de combater a “desinformação” e proteger a “democracia”, o Ministério da Verdade instituiu uma nova forma de censura — silenciosa e eficaz. Nela, as redes sociais dos cidadãos são monitoradas, seus perfis suspensos, seus conteúdos removidos, e pessoas são presas por manifestar opiniões dissonantes. O conceito de “fake news”, mesmo sem previsão constitucional, tornou-se uma arma subjetiva, aplicada seletivamente contra vozes conservadoras ou contrárias à agenda dominante do nosso Big Brother tupiniquim.
A figura do Grande Irmão assume contornos cada vez mais preocupantes e onipresentes. Ele não é mais apenas um magistrado: é, para muitos, o próprio intérprete supremo da verdade. Suas decisões têm peso de decreto, e qualquer crítica ou contestação é rapidamente enquadrada como ameaça à ordem institucional. O medo volta a silenciar cidadãos, jornalistas e parlamentares. A autocensura se alastra como um vírus. O país respira insegurança jurídica.
A comparação com 1984 não é mera hipérbole. Assim como no livro de Orwell, os brasileiros estão diante de uma suprema corte que reescreve fatos, apaga versões alternativas da realidade e rotula como “inimigo” todo aquele que ousa pensar diferente. Como já dito, não há mais espaço para o debate, para o dissenso, para o contraditório. Em nome de uma suposta defesa da democracia, destrói-se justamente aquilo que a sustenta: a liberdade.
É urgente que a sociedade brasileira desperte. Quando um poder se agiganta sobre os demais, quando juízes assumem papéis de legisladores e chefes de Estado, quando se cala o povo em nome do “bem maior”, estamos diante de uma ditadura de toga. O silêncio, hoje, é cumplicidade. Que cada cidadão brasileiro, com coragem e discernimento, saiba identificar os sinais do autoritarismo — mesmo quando ele se veste com as roupagens da lei.
*João Arruda
Sociólogo e professor aposentado da UFC.