“Atuar com celeridade, especialmente diante de crimes que ameaçam a ordem democrática, é necessário”, aponta o advogado João Lister.
Confira:
A volta de Donald Trump ao cenário político dos Estados Unidos como presidente eleito nesse 2024 é uma constatação incômoda das falhas de accountability do sistema judicial estadunidense. O ex-presidente, ainda influente e amplamente seguido, até hoje não foi plenamente responsabilizado por sua tentativa de minar o processo democrático e incentivar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Esse episódio levanta uma preocupação universal para qualquer nação democrática: até que ponto a impunidade de líderes autocráticos pode corroer o próprio sistema político? E como essas democracias, ao hesitar em responsabilizar figuras controversas e polarizadoras, arriscam-se a promover uma cultura de leniência com o autoritarismo?
O caso americano é emblemático e deveria ser um ponto de reflexão para todos os sistemas judiciais ao redor do mundo. Em qualquer democracia funcional, a independência entre Justiça e política deve ser clara. Contudo, o processo para investigar e punir Trump – mesmo diante de provas documentadas de sua interferência no processo eleitoral e seu incentivo direto a atos de insurreição – escancara uma falha institucional inquietante. Em vez de agir com rapidez para preservar a estabilidade democrática, as instituições hesitaram, prolongando os processos legais e permitindo que Trump mantivesse sua narrativa de “vítima” de um sistema “corrupto”. Esse atraso contribui para normalizar a ideia de que figuras políticas proeminentes podem subverter as regras democráticas e, ainda assim, permanecer impunes, um sinal perigoso para a saúde de qualquer democracia.
A decisão de não agir com rigor perante essa transgressão incita uma polarização sem precedentes e oferece uma falsa legitimidade àqueles que se consideram acima da lei. Esse contexto coloca em risco não apenas o processo eleitoral, mas também a confiança pública nas instituições, o que é essencial para a continuidade de uma democracia robusta. O que se observa é que a força de figuras populistas, quando não limitada por um sistema de freios e contrapesos firme e célere, promove um ciclo de ódio, extremismo e desinformação que pode minar até mesmo as democracias mais tradicionais. Ao hesitar, o sistema judicial estadunidense dá espaço para que Trump se apresente não como um líder que violou a ordem democrática, mas como um defensor de seus apoiadores “perseguidos”, reforçando uma narrativa incendiária.
No Brasil, a situação se apresenta com paralelos preocupantes. Em 8 de janeiro de 2023, cenas de caos e violência tomaram conta da Praça dos Três Poderes em Brasília. Grupos de apoiadores de Jair Bolsonaro, inconformados com a derrota eleitoral, invadiram e vandalizaram as sedes dos três Poderes da República em uma tentativa explícita de desestabilizar o governo democraticamente eleito. Em um ato que espelha o que ocorreu nos EUA, os bolsonaristas não agiram sozinhos: o ex-presidente Bolsonaro fomentou, desde o início, uma desconfiança no processo eleitoral, apoiando teorias sem fundamento de fraude e deslegitimando as instituições que garantem a integridade do pleito.
Esse fenômeno de deslegitimação das instituições é mais perigoso do que aparenta. Ao promover a desconfiança e incitar o ódio, líderes como Trump e Bolsonaro não apenas fomentam atos de insurreição, mas também criam uma atmosfera de incerteza que mina a estabilidade social e política. Quando a população começa a acreditar que as instituições não são confiáveis, abre-se espaço para que o próprio tecido democrático seja questionado e corroído. Em ambos os países, a hesitação em aplicar sanções legais rigorosas a esses líderes coloca em risco o próprio sistema, ao permitir que o autoritarismo encontre espaço para crescer e para se normalizar.
Desde os ataques contra a democracia, tanto Trump quanto Bolsonaro mantiveram uma campanha constante de desinformação, disseminando fake news para sustentar suas narrativas e fortalecer suas bases. Por meio de discursos públicos e postagens em redes sociais, ambos seguem promovendo teorias de conspiração e alegações infundadas sobre fraudes eleitorais e perseguição política. Essa prática não apenas perverte o sistema democrático, mas também confunde e polariza o eleitor, afastando-o da verdade factual e debilitando sua capacidade de tomar decisões informadas. Ao minar a confiança nas instituições e manipular a opinião pública, essa estratégia de desinformação cria um ambiente propício para a normalização de líderes autocráticos e pode, inclusive, ajudar a explicar o ressurgimento de Trump nas eleições atuais. A continuidade desse comportamento levanta um alerta para a importância de medidas mais severas e urgentes contra a propagação deliberada de mentiras políticas, sem as quais a democracia pode se tornar cada vez mais vulnerável.
Para que o Brasil evite os mesmos erros que os Estados Unidos, seu sistema judicial precisa atuar com celeridade, o que não vem ocorrendo, pois se por um lado o STF já puniu centenas de criminosos sobre a tentativa de Golpe, no 08/01; por outro lado, Bolsonaro vai escapando pelo meio dos dedos da Justiça. Atuar com rigor e celeridade, especialmente diante de crimes que ameaçam a ordem democrática é necessário, para que o Brasil não seja o EUA, de hoje, que elegeu Trump. Em casos de ataque ao processo eleitoral e de promoção de teorias conspiratórias sem fundamento, a reação judicial não pode ser morosa. A demora no julgamento de Bolsonaro e seus aliados, envolvidos direta ou indiretamente nos eventos de 8 de janeiro, alimenta a falsa percepção de que atos antidemocráticos podem ser tolerados. Além disso, o Brasil corre o risco de criar um perigoso precedente: se Bolsonaro e seus apoiadores não enfrentarem consequências concretas, uma nova tentativa de desestabilizar o país no futuro poderá se tornar ainda mais provável.
Ao agir com firmeza e rapidez, o Brasil pode não apenas manter sua democracia intacta, mas também enviar uma mensagem clara ao mundo: a de que está comprometido em proteger os valores democráticos e que líderes não estão acima da lei. Na era da hiperconectividade, onde narrativas populistas e antissistêmicas são amplificadas pelas redes sociais, a democracia não pode se dar ao luxo de ser complacente com aqueles que ameaçam sua essência. No Brasil, é essencial que a justiça se imponha de maneira incisiva, demonstrando que atos golpistas não passarão sem resposta e que as instituições brasileiras são resilientes e determinadas a se preservar.
Este é um momento decisivo para o país. A resposta à insurreição de 8 de janeiro precisa ser contundente, não apenas como forma de justiça, mas também como uma defesa explícita da democracia. Se o Brasil falhar, estará transmitindo uma mensagem perigosa: a de que a democracia pode ser minada sem consequências, de que o autoritarismo tem espaço em um sistema que deveria ser igualitário e justo. E Trump pode apontar, não suas caravelas, mas seus eficientes Marines, ao Sul da América.
João Lister é advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV