Categorias: Opinião

“A escrita dói tanto quanto o pensar” – Relatos Organizados Por Mirelle Costa

Em referência ao Agosto Lilás, mês da conscientização e enfrentamento à violência contra as mulheres, a jornalista e escritora Mirelle Costa relata diariamente, neste espaço, casos que servem de alerta a todos nós

Confira:

(O texto abaixo foi escrito por uma mulher vítima de violência doméstica, atendida na Casa da Mulher Brasileira, em Fortaleza. O texto compõe a obra “Após a Morte do Conto de Fadas, a Ressurreição”, publicada pelo Senado Federal, e organizada pela jornalista e escritora Mirelle Costa. Este texto pode conter gatilhos emocionais que podem afetar algumas pessoas).

Sou uma menina-mulher, a mais nova, com trinta anos de idade. Nunca me casei na igreja e nem no civil. Hoje sou mãe e tenho uma filha de quatro anos, que se chama Lara Judite.

Sou vítima da violência desde nova. Quando eu nasci, fiquei pouco tempo com a minha mãe e logo fui para uma amiga dela, pois minha mãe não tinha leite suficiente para mim. Isso é o que ela falava e dizia também que minhas irmãs mamavam direto.

Tenho duas irmãs mais velhas que também foram vítimas de violên- cia. Meu relacionamento com essa mulher, que era a amiga de minha mãe, era legal. Logo fui crescendo e chamando as duas de mãe. Não entendia o porquê de duas mães. Só a ouvia repetindo a mesma história de que “não tinha leite porque minhas irmãs mamavam muito”.

Essa minha outra mãe tinha muitos filhos, uns sete, pelo menos, foram os que eu conheci. A casa era uma bagunça, pequena para tanta gente. Tinha um quarto no fundo de uma casa em um beco estreito, onde só passava uma pessoa por vez. Não havia banheiro. O que um fazia todos viam, praticamente. O tempo passou e eu ficava me revezando nas duas casas. Era legal, ela cozinhava muito bem. Eu era forte, comia até não aguentar mais. Estudava na escola de minha prima, que era particular. Minha mãe me levava e buscava. O tempo passou e minha mãe “de sangue” me colocou na escola pública.

Nesse tempo, meu pai era junto com ela e trabalhava como pedreiro. Teve uma vida sofrida pelo que ele falava e logo passou a demonstrar outros comportamentos com a gente. Éramos eu, minhas irmãs, minha irmã de leite, minha mãe e minha tia.

Aparentávamos ser uma família unida, formal, até eu ver certas atitudes dele. Era ciumento com a gente, não podíamos brincar na rua e nem levar ninguém para dentro de casa. Tínhamos entre oito e dez anos de idade. Não entendia o porquê de ele tratar a gente assim. Apanhava por qualquer coisa.

Eu e minhas irmãs éramos mantidas direto dentro de casa e só podíamos sair se fosse para a aula ou com minha mãe.

Minha vizinha (que Deus a tenha) fazia tudo pela gente. Minha mãe fez uma casa no quintal, porque ela queria ter a gente por perto. Minha avó era cozinheira “de mão cheia”, fazia todo tipo de guloseimas para a gente não ficar triste.

A relação dele com minha mãe ficou estranha. Ele passou a sair com a vizinha, que se dizia amiga deles. Como eu não entendia muito a situação deles, um dia ele me levou para uma visita próximo de uma lagoa. Tinha uma estátua de joelhos, era bem-acabada, havia uma mangueira no meio da rua, não era um lugar agradável. O mato era alto, a calçada estava quebrada e, neste dia, ele estacionou debaixo dessa árvore, me olhou e disse: você gosta de mim? Eu não entendi o porquê dessa pergunta, mas respondi que sim, pois era meu pai. Ele veio e colocou a mão na minha cara e ordenou que eu não contasse nada para ninguém, senão minha mãe e o restante da família morreriam.

Eu me vi no beco sem saída. Ele sempre me levava para ir com ele para fazer o orçamento do trabalho. Era legal, porque eu aprendia, mas era chato também, pois ele sempre me tocava e eu não gostava. Só fazia tirar a mão dele. Ele dizia que não ia me machucar, pois era carinho.

Eu não podia contar nada para ninguém; tinha medo de nunca mais ver minha mãe. Eu fazia de tudo para não ir com ele, mas ele pegava no meu braço e me levava praticamente à força. Isso tornou-se rotineiro. Ele tinha várias caras e gestos diferentes, eu não aguentava mais. Em casa, não parava de me perturbar. Eu já não dormia direito, tinha medo dele abusar completamente de mim. Não sei como ele fazia com minhas irmãs.

Pai: “Se você contar para sua mãe, lhe dou uma surra grande e degolo sua mãe”.

Eu: “Sai pai, sai pai”.

Pai: “Deixa de besteira! Pode dormir”.

Eu: “Pois vou dormir com a cachorra”.

Eu e minhas irmãs ficamos indiferentes umas com as outras; ninguém falava sobre o que estava acontecendo. Até que, uma noite, a minha mãe o viu em cima de mim. Ele estava com a mão na minha vagina e a outra mão na minha boca, para eu não gritar. Ele era um monstro. Ele me perseguia direto, em todos os cantos.

Quando minha mãe viu aquela cena, ela teve uma crise de nervosismo, fez uma briga e ele só ficou desconfiado na hora e falou: “Você tá é doida! Eu não tô fazendo nada! Isso é ciúme”.

Minha mãe me tirou da cama, olhou minha calcinha e tinha uma gosma nela. Eu chorava que soluçava e ela perguntando o que ele fez. Não respondi, tinha medo dele fazer algo. Ela me deu um banho e guardou a minha calcinha. Era uma tortura cada momento que se passava. Eu só pensava em suas ameaças, o medo era constante.

Minha mãe ficou perguntando para mim e para as minhas irmãs, de várias formas diferentes, até que minha irmã falou:

“Não aguento mais viver, quero morrer para que isso pare. Eu não mereço viver!”

Minha mãe viu aquela cena e caímos no choro. Todas as filhas confirmaram e ela ficou sem chão. Na hora, caiu o seu mundo, todas choravam. A família de minha mãe deu um pouco de apoio, mas a dele nos abandonou, exceto meus padrinhos, que são os primos dele de primeiro grau. Eles nos apoiaram e deram o máximo que podiam.

Surgiu uma denúncia anônima sobre o caso, ele foi embora de casa, mas tinha algumas vezes que vinha fazer a tal visita. Vinha para ver se o clima tinha mudado, se a poeira havia baixado. Não era mais bem-vindo. Ele era calculista nas palavras, esperava vir a primeira palavra para se defender e virar vítima. Lembro que, em sua última visita, ele chorou, disse que foi tratado como um cachorro e que ninguém mais queria vê-lo por perto. Ele se martirizava com as palavras e dizia que foi um engano da minha mãe, que era apenas ciúmes dela sobre a gente. Para a família dele, a minha mãe era mentirosa, eles não acreditavam na gente.

Por um certo tempo, ele não veio mais na casa de minha mãe. Ficamos sem saber dele por um bom tempo. Era um alívio, mas o tempo era como se esperasse algo a qualquer hora dele. Minha mãe levava e buscava a gente na escola. Eu cheguei a repetir de ano quando a bomba estourou. Eu era como uma pedra, não tinha mais sorriso e nada me alegrava, tudo lembrava ele. Tinha medo de ficar só com todo mundo.

O tempo passou e cheguei na pré-adolescência. Passei a ser “popular”, pelas brigas e brincadeiras. Lembro que um menino, chamado Wanderson, pediu um beijo e eu disse que não dava. Foi quando ele me esperou e me seguiu. Parou e pegou meu braço, tentou me beijar à força e eu resisti, não aceitei. Com raiva, ele me deu uma rasteira e caí sentada na pista, em pleno meio-dia. Na minha cabeça, ele iria fazer o pior. Um homem que morava próximo gritou. Ele se assustou e foi embora.

Não foi um tempo bom. Eu logo procurei fazer cursos e trabalhar para ter minhas coisas. Aos treze anos, já estava trabalhando em uma cozinha industrial e logo conheci pessoas novas. Foi quando passei a sair com um rapaz sete anos mais velho do que eu.

Ele era de família humilde, simples, era legal. Passamos a ficar mais tempo juntos. O tempo passou e deixei ele fazer parte da minha vida, por treze anos. Tinha catorze anos, à época. Era uma relação de idas e vindas. Não tive infância e nem adolescência normal, pois tinha ele na época.

Pelos meus vinte e poucos anos, decidi viver. Coloquei um ponto-final no nosso relacionamento e ele foi embora para São Paulo. Nesse tempo, me senti livre como um pássaro que foge de uma prisão.

Minha mãe só me via três vezes na semana. Passei a trabalhar do- brado e continuava no curso. Era a minha melhor fase. Ia para as festas com meus antigos patrões; era legal demais. Ganhava um salário bom, comecei a ter várias coisas, ajudava muita gente. Na minha casa, não faltava nada. Cheguei a fazer tantas compras, que minha mãe ajudava a vizinha e seus filhos. Passaram-se uns anos e conheci outra pessoa, Tiago. Ele era do interior, passava dificuldades e estava na capital na casa de um dos tios dele. Trabalhava num depósito de construção. Nesse tempo, ele tinha uma “ficante” e eu passei a trabalhar em uma pizzaria perto da minha casa.

Ele demonstrou interesse e insistiu em sair comigo, passou a frequentar os mesmos lugares que eu frequentava. Um dia, em uma festa, passei a dançar um forró com ele e ele, no meu ouvido, começou a falar coisas bonitas e agradáveis. Resolvi dar uma chance. Começamos a ficar nos primeiros dias escondido, pois ele falava que era bom assim, mas, na verdade, era porque ele estava ficando com a outra e comigo.

Passaram-se uns dias e eu falei para ele escolher com quem que ele iria ficar e logo ele disse:

“Quero você, me amarrei em ficar com você”.

Namoramos durante seis meses e decidimos nos juntar. Fomos para uma quitinete próxima à casa da minha mãe. No começo da minha união com ele, minha mãe criticava o relacionamento. Eu não via defeito em nada. Era tudo bom, perfeito. Estava feliz, idealizava demais minha vida. Ele não tinha tanta preocupação com nada.

Passaram-se os meses e logo começou o primeiro sinal de ciúme. Eu não via nada demais, achava que era um zelo grande que ele demonstrava. Quando chegava no horário de me arrumar para ir ao trabalho, ele fazia questão de falar que as minhas roupas eram apertadas:

“Tá mostrando suas partes toda”.

Dizia que era para eu chamar a atenção. Não “ligava” para aquela situação. Ele achava ruim o tanto de perfume e maquiagem no meu rosto. Tudo o que eu usava o incomodava e eu não “ligava”. Eu achava normal no início, passaram-se os meses e logo vieram as brigas com tapas. Passei a ficar trancada e ele vinha com ameaças de que, se eu falasse ou pedisse ajuda, ele iria fazer pior.

Passaram-se seis meses assim, até eu parar de trabalhar e ficar só no curso, e logo tive que parar o curso também. Era um inferno viver assim. Meus vizinhos ouviam as brigas, os tapas, os murros, horas de confusão entre mim e ele. Mais tarde, descobri traições dele e fui fazer o mesmo com ele, mas fui agredida na rua.

Passei a me isolar de todos. Ele me proibiu de ir à casa da minha mãe.

Nesse tempo, eu era obrigada a ter relações com ele quantas vezes ele quisesse; parecia um selvagem com fome. Era direto, eu já não aguentava mais. Ele tinha tudo lá fora, mas me mantinha trancada e fazendo o que bem entendesse.

Passaram-se uns meses e eu descobri uma gravidez. Fui para uma médica no posto de saúde e disse que era vítima de estupro e que não queria aquela criança.

Quando ele soube da gravidez, não acreditou. Então, fui até o trabalho dele e mostrei o resultado do “beta”. Ele ficou sentado e o patrão dele falou assim: “Cara, tu tá ferrado com uma criança”.

Quando estava com quatro meses de gravidez, ele veio e me deu um tapa, não aceitei aquele tapa e fui revidar. Para quê? Ele veio com ódio e me bateu mais ainda, com joelhos na minha barriga. Ele tentou me segurar e eu peguei um garfo para me defender; foram momentos terríveis. Ninguém vinha para separar a gente.

Com o passar dos meses, a barriga cresceu e ele foi acalmando. Não batia mais como antes, só me humilhava. Eu trabalhei os nove meses e seis dias da gravidez.

Em um sábado, tive uma briga com ele e minha bolsa estourou. Ele viu a água nas minhas pernas e, depois, o sangue. Aproximou-se e ligou para um colega me acompanhar até a maternidade. Eu não aceitava ter o bebê, achava que não ia conseguir.

Passei três dias no hospital e descobri que havia outra pessoa com ele em nossa casa. Tive minha bebê. Eu não a queria até o parto, até o ponto de vê-la saindo de dentro de mim. Naquele momento, tudo mudou pra mim.

Ele ficou mais violento. Com pouco tempo que cheguei do hospital, passei a levar tapas e murros, não aguentava mais. Passei a agredi-lo.

Em uma das brigas, ele me enforcou com uma barra de ferro contra a porta e eu consegui me livrar, passei um estilete nele, que viu que eu não estava de brincadeira e nem apanhava mais de ninguém.

Foram tempos sofridos. Eu decidi me separar e ele foi preso, em flagrante, na frente do hospital. Depois disso, tentei mais uma vez por- que gostava dele, mas ele não mudou em nada. Eu me separei e vi outra forma de viver.

Eu não aceito mais viver assim. Eu não quero mais isso para mim.

Passei por outros abusos, mas não dou mais minha cara para ninguém bater.

Hoje sou feliz com minha filha, luto pelos seus direitos. Eu me amo e amo a minha filha. Não aceito uma relação com abuso. Eu superei tudo o que vivi e, hoje, posso falar e viver de forma diferente.

Eu encontrei uma árvore com frutos e sombra para descansar.

Como uma fênix

(Diante de qualquer situação de violência doméstica, ligue 180, é a Central de Atendimento à Mulher, um serviço telefônico do governo federal que oferece acolhimento, orientação e informações sobre os direitos das mulheres, além de receber denúncias de violência contra a mulher)

Mirelle Costa e Silva é jornalista, mestre em gestão de negócios e escritora. Atualmente é estrategista na área de comunicação e marketing

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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