A Inteligência Artificial (IA) na literatura é um tema cada vez mais discutido. A polêmica sobre o uso da tecnologia para criar obras literárias foi recentemente reacendida por Rie Kudan, uma escritora japonesa que confessou ter utilizado o Chat GPT, uma ferramenta de IA, para escrever cerca de 5% de seu romance premiado. Segundo ela, a IA ajudou a liberar seu potencial criativo.
A Confissão de Rie Kudan: O Que Nos Revela?
Por que a autora decidiu revelar o uso da IA? Se ela não tivesse contado, alguém teria descoberto? Isso nos leva a questionar: quantos outros textos e livros foram escritos com a ajuda de IA? Kudan afirma que apenas uma pequena parte de sua obra foi criada com a ferramenta, mas se todo o livro tivesse sido escrito por IA, como ela se sairia em uma palestra ou entrevista sobre ele? Até que ponto podemos nos apropriar de um livro que não escrevemos totalmente?
Reflexões sobre a Legitimação na Literatura
Essa questão me fez lembrar de uma conversa com o escritor Mailson Furtado, autor de À Cidade, obra selecionada para o Vestibular 2025.1 da UVA. “Estamos no tempo do autor. Ele agora é a principal figura do mercado editorial, enquanto, no passado, era a editora. Há uma necessidade para qualquer autor e artista, que é a legitimação”, destacou o vencedor do prêmio Jabuti em 2018.
O Papel da Autenticidade na Escrita
Eu me orgulho de escrever meus textos. A escrita é uma extensão do que sentimos e pensamos; uma forma de tocar o coração do leitor. Como a inteligência artificial pode captar essa essência única do escritor? Além disso, quem disse que “perder tempo” escrevendo é realmente uma perda? Tenho tanto orgulho de bater no peito e mostrar um texto escrito por mim que jamais deixaria algo (pois não posso dizer alguém) me tirar esse pertencimento. Em minha opinião, nada é tão nosso quanto a nossa escrita, pois escrita é sentir e fazer o outro sentir também. Nós, leitores, identificamos os textos de nossos escritores favoritos pela forma com que escrevem. Como essa inteligência de dados pode captar uma maneira de escrever que é tão única do escritor?
Nesses devaneios entre mim e eu mesma, provoquei um amigo escritor que não foge de uma boa polêmica (costumo pensar que ele corre é ao seu encontro rs).
Escrever é um martírio
Em uma discussão sobre esse tema, o escritor e editor Raymundo Netto destacou a diferença entre ser alfabetizado e ser escritor. Segundo Netto, “Em um país de analfabetos – funcionais ou não –, escrever é um martírio, lembrando os terríveis ditados escolares, além de materializar uma prova cabal contra si: não saber o mais chinfrim português. Um constrangimento agora abolido pelo IA, que não só cria o texto para você, como o revisa, deixando-o prontinho, na boca desse usuário: “perfeito!”. Escrever em si é simples, basta saber soletrar, mas ser escritor de literatura, buscar formas criativas de expressão, brincar com o vocabulário, tentar provocar emoção no(a) leitor(a), é outra coisa. Vivemos em um momento em que muitos, por meio das bolhosas redes sociais, buscam holofotes e seguidores, não importando que tipo de conteúdo tenha a oferecer. Tem que viralizar, virar meme, ganhar likes. A sociedade estimula isso, inclusive o mercado editorial. O texto, a literatura em si, fica à sombra do produto, que é o(a) autor(a). Não ligamos muito para o que escreve, mas com que influencer ele anda, o que come, o que faz, com quem dorme. A espetacularização da sociedade e a criação de “fakes celebridades” não deixam espaço para a reflexão e o aprofundamento. A IA assegura, como um ghost-writer eletrônico – e bem mais barato –, que o(a) candidato(a) a escritor(a) midiático(a) tenha tempo o suficiente para dedicar-se ao seu público, a criar morada nas suas telas, falando sobre qualquer coisa, diretamente de qualquer parte do planeta, contando com seguidores existentes apenas no mundo algorítmico, auxiliado pela sua editora, que entendeu há tempos que o mercado precisa de livros, mas não necessariamente de literatura. Ademais, é muito sedutor para as editoras, especialmente às pequenas e médias, o emprego da inteligência artificial, impactando em menores custos de produção. Aliás, discutir sobre mercado é uma coisa, sobre literatura é outra. O sucesso procurado e propalado, como em qualquer outra linguagem artística, pode ser apenas o sinal maior do fracasso de um povo”, reflete Raymundo Netto, que teve sua obra Quando o Amor é de Graça também selecionada para o vestibular 2025.1 da UVA.
Meu amigo e escritor Raymundo Netto habla, mas não sai correndo (eu gosto é assim!). Perguntei “apenas” a sua opinião e ele alugou um triplex na minha cabeça. Obrigada pela contribuição valorosa, meu amigo! Ainda bem que, na minha mente, você não paga aluguel.
E aí (AI), o que vocês acham, meu povo?
Vou ali tomar um cafezim, deitar na rede (dominguemos, amém) para ler os comentários de vocês e, na semana que vem, a gente continua esse papo polêmico.
Ver comentários (8)
Acho que o verdadeiro escritor não abre mão de escrever os seus próprios livros. Isto lhe é inato, necessário e urgente.
Eu sempre achei que as tecnologias foram feitas para se usar e facilitar a vida. Vejo a briga com as IAs como uma resistência a modernidade. Nós sempre temos dificuldade de aceitar o novo e de abrir espaço para aquilo que foge da tradição. Realmente eu não acho que escrever um livro inteiro por IA seja legal. Acredito que o texto autoral, viceral, que trás o estilo e marca de quem escreve nunca será substituído, mas defendo que a IA possa nos ajudar neste processo nos sugerindo ideias, temas, organização. Em um momento de bloqueio criativo, dificuldade de organização de escaleta, detalhes de um personagem, força de um conflito porque não aceitar a ajuda de uma IA? Acredito que nós escritores (as) precisamos sair da nossa caixinha de intelectualidade intocável e em algum momento se render às novas ferramentas. A briga entre novidade e tradição sempre foi intensa no nosso meio, mas a questão é que as IAs vieram para ficar e não vejo sentido em manter uma briga infinita com elas. Sou da opinião de que se algo existe e pode me ajudar de alguma forma eu devo encontrar uma maneira de tirar vantagem disso. A mesma coisa acontece ainda hoje com as redes sociais. Um número grande de escritores ainda mantém uma luta ferrenha contra elas ao invés de usa-las a seu favor, Insistindo na maneira antiga de fazer marketing ou não fazendo marketing nenhum da nossa escrita. Outra coisa nessa discussão é que a IA não existe sem o ser humano. Se o ser humano não souber formular prompts detalhados, baseados em suas próprias habilidades e temas a IA não vai entregar nada que preste. Ou seja, a personalidade de quem usa a IA sempre vai estar ali. Volto a reiterar que não concordo com livros literários escritos por IA, mas defendo o uso dela para diversas coisas na vida, inclusive para nos dar ideias e detalhes para melhoria de nossos livros. A IA já existe há muitos anos, mas só agora está causando este rebu. O Canva nosso de todo dia é uma IA e ninguém crítica as artes que fazemos nele há décadas. Diversos aplicativos que existem por aí já utilizam IA há anos e muitos de nós usa, mas com a chegada do chat GPT que veio diretamente colocar a escrita em evidência nos sentimos ameaçados. A história social é sempre uma evolução. Saímos do telefone fixo para os smartphones, do rádio tradicional para os podcasts e rádio web, da TV para os streamings, da máquina de escrever para o computador e assim por diante. E cada uma destas invenções trouxe frison no início, mas depois todo mundo conseguiu conviver em paz com elas. Eu acredito que assim será com as IAs. Portanto, continuemos escrevendo, melhorando nossa escrita, firmando nosso estilo, mas de mente aberta para se adequar às novidades.
Acredito que é um debate necessário e delicado. Creio que a IA é uma realidade inadiável e precisamos aprender como, onde e quando devemos usar. Penso que em processos criativos o uso pode ser aquele pontapé para oxigenar ideias.
O verdadeiro escritor ama o ato de escrever e o sente como essência da vida. Isso uma IA jamais conseguirá decodificar.
Além do dever com a literatura, temos o dever pela arte. IA, mesmo quando usada em artes gráficas, por exemplo, quebra esse pacto colaborativo que fizemos com a arte — de catarse, de companheirismo, acalento e humanidade.
Uma vez utilizada a IA, perdemos o que nos torna humano: essa capacidade de sentir e representar.
Acredito que existe um linear tênue entre ajuda e mão de obra. E não podemos deixar a IA cruzá-la.
Escrevo para exorcizar os demônios dessa vida ameaçada de enormidade de desigualdades e preconceitos, Uma necessidade. A tecnologia é necessária e presente, mas nunca me daria essa emoção.
Utilizar a IA para ajudar na escrita de um livro, não pode limitar o processo. Criar é um ato pensante. Se a pessoa que escreve não consegue pensar a sua própria criação, só podemos lamentar.
Importante reflexão essa que você trouxe, Mirelle Costa e Silva. Não dá simplesmente para não discutir o assunto e fingir que ele não existe, né?
Na minha opinião, o texto literário é uma obra de arte. É, portanto, uma produção subjetiva. Por esse motivo, hoje em dia, não acho válido/justo/correto que o autor se aproprie da IA para a produção de um texto literário/de uma obra de arte.