“A mentira existe” – Por Alexandre Aragão de Albuquerque

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política

“Mentiras orquestradas, espionagem ilegal e manipulação digital marcam herança do bolsonarismo exposta em decisões do STF e da Polícia Federal”, aponta o cientista político Alexandre Aragão de Albuquerque

Confira:

Não pensem vocês que são suas mentes brilhantes ou suas ideias inspiradas que conduzem suas vidas. São seus hábitos. Os hábitos possuem uma enorme capacidade de aprisionar o agir humano. Que cultivemos os bons, porque os maus hábitos nos escravizam impiedosamente. (YOGANANDA, Paramahansa)

I. Tirania digital – A mentira existe. É falso afirmar que tudo se trata de uma questão de opinião. Minimizar a mentira como se ela fosse algo acessório, menor ou até mesmo anedótico pode ser uma atitude profundamente nociva para a vida em sociedades contemporâneas.

Por exemplo, uma coisa é imaginar que a Justiça Eleitoral não funciona de forma ideal como se gostaria; mas outra coisa, absolutamente diferente, é afirmar e divulgar, por diversos meios digitais, como ocorreu recentemente, de forma sistemática e estruturada durante todo o desgoverno Bolsonaro, que existe no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) uma sala escura na qual os magistrados manipulam o código fonte das urnas eletrônicas. Isto é uma mentira, inclusive uma mentira penalmente imputável.

No julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 11 de junho de 2025, o ministro Flávio Dino apresentou, no plenário, um voto marcante a favor da responsabilização das redes sociais por conteúdos ilegais publicados por seus usuários, mesmo sem ordem judicial prévia.

Dino argumentou que a liberdade é um valor nodal, e liberdade (também a de expressão) sem responsabilidade é tirania. Afinal, todos nós estamos adstritos a um conceito constitucional de liberdade. Até os casais têm de se submeter, no exercício de sua liberdade, aos preceitos determinados pela Constituição.

Exemplificou o Ministro. As pessoas não são obrigadas a crer em Deus. O que não pode é, em qualquer meio, inclusive o digital, em nome da liberdade de expressão, os crentes pretenderem caluniar, atacar, punir ou exterminar aqueles que são agnósticos em relação à existência de Deus. Portanto, é impossível um Tribunal (como o STF), que tem como obrigação expressar os melhores valores que a humanidade foi capaz de produzir, no campo filosófico e científico, como também no campo da espiritualidade, encontrar-se diante da mentira e minimizá-la.

Para Flávio Dino, as plataformas têm o dever de vigilância ativa em casos de conteúdos especialmente graves, podendo ser responsabilizadas mesmo sem notificação judicial quando se trata de perfis falsos, robôs ou postagens impulsionadas. Tal ônus faz parte do risco do negócio capitalista, comparando-o à necessidade de sistemas de segurança como ocorrem em bancos e shoppings centers.

II. Espionagem como política de Estado – No dia 26 de junho de 2023 foi instaurado um processo de investigação pela Polícia Federal (PF) em virtude de PET 11108/DF, autuada por prevenção ao Inquérito 4.781/DF, a partir da reportagem do jornal O Globo, no 14/03/2023, sob o título “Abin confirma uso de programa secreto que monitorou alvos durante o governo Bolsonaro”.

A acusação é grave: usar a estrutura de inteligência do Estado brasileiro para monitorar ilegalmente adversários políticos, atendendo a interesses pessoais e para disseminar informações falsas sobre o sistema eleitoral. Atitudes semelhantes a de governos ditatoriais, evidenciando o quanto Bolsonaro e seu bando são perversos em seus objetivos, em seus hábitos de mentir de forma contundente. Isto é apenas a ponta de um grande iceberg.

Em 12 de junho de 2025, a autoridade policial encaminhou aos autos o Relatório Final de Investigação. Para evitar a continuidade de vazamentos seletivos que estavam ocorrendo, e prejuízo à instrução processual, em 18 de junho, o ministro relator, Alexandre de Moraes, determinou o levantamento do sigilo dos autos principais da Pet. 11108/DF, inclusive o Relatório Final da Polícia Federal.

O Relatório Final sobre a assim chamada ‘Abin Paralela’ revelou, com amplas e contundentes provas materiais, a existência de uma organização criminosa que operava dentro da Agência Brasileira de Inteligência com integrantes do governo Bolsonaro.

Essa estrutura bandida, segundo o documento, foi usada para proceder espionagem ilegal de cidadãos comuns, servidores federais, jornalistas, empresários, autoridades dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Além disso, tal organização criminosa buscava ampla disseminação de mentiras (fake news) como forma de estabelecer perseguição sistemática àqueles que ela considerava seus adversários políticos.

A Polícia Federal indiciou 36 pessoas, entre as quais:

Carlos Bolsonaro (Núcleo Estratégico: topo da organização, onde estavam as principais decisões) – Chefe do Gabinete do Ódio. Fazia parte do núcleo político central da organização criminosa, beneficiando-se diretamente das informações sigilosas obtidas ilegalmente pela Abin, que é uma instituição do Estado brasileiro. Ele teria influenciado fortemente na nomeação do policial federal Alexandre Ramagem para o comando da agência e atuado como elo entre o chamado “Gabinete do Ódio” e a estrutura de espionagem ilegal. Também foi identificado como destinatário dos relatórios de inteligência usados para atacar os considerados adversários nas redes digitais.

Alexandre Ramagem (Núcleo Operacional: responsável pelas ações de inteligência e vigilância) – Como ex-diretor geral da Abin, ele é acusado de ter comandado a estrutura paralela criminosa dentro da agência. Teria autorizado o uso do software israelense espião First Mile – adquirido sem licitação pública – para monitorar ilegalmente ministros do STF, parlamentares, jornalistas e servidores públicos. A Polícia Federal aponta também que tentou obstruir investigações. Sua gestão foi central para o funcionamento do esquema criminoso.

Flávio Bolsonaro – A Polícia Federal descobriu um áudio de uma reunião no Palácio do Planalto, em agosto de 2020, entre Jair Bolsonaro, Alexandre Ramagem e alguns assessores. Nessa conversa discutia-se como usar a Abin para blindar Flávio no caso das rachadinhas, inclusive sugerindo-se abrir processos administrativos contra auditores da Receita Federal que elaboraram o relatório que embasou a investigação. A Abin também teria produzido relatórios de orientação para a defesa de Flávio. (‘Abin paralela’: investigação descobriu áudio clandestino entre Bolsonaro e Ramagem).

Jair Renan – Aparece no Relatório como um dos beneficiários indiretos da estrutura de espionagem ilegal. A investigação aponta que a Abin teria atuado para levantar informações que pudessem favorecer sua atuação política e protegê-lo de investigações.

Jair Bolsonaro (Núcleo Estratégico) – O Relatório aponta que ele, enquanto presidente da República, tinha pleno conhecimento do esquema criminoso e era seu principal beneficiário. (Relatório da PF afirma que Bolsonaro tinha conhecimento de esquema ilegal de espionagem na Abin).

Destaca-se que a espionagem contra servidores da Receita Federal foi uma das ações mais nefastas identificadas pela PF. Segundo o Relatório Final, esses servidores foram monitorados intensamente por meio do programa FirstMile, o qual permitia rastrear telefones celulares em tempo real. O objetivo era fazer um levantamento de eventuais debilidades dos servidores para implementar abertura de processos administrativos para desacreditá-los. O software israelense foi utilizado em mais de 60 mil buscas contra alvos durante a gestão Bolsonaro.

Por fim, no organograma da organização criminosa configurava o Gabinete do Ódio, sob o comando de Carlos Bolsonaro, responsável por definir alvos a serem atingidos, por meio das narrativas e estratégias de ataque, composto de operadores de inteligência e comunicação. Havia um Núcleo de Produção de Conteúdo, responsável pela elaboração de textos, vídeos, memes e postagens para as redes digitais, ajustando sistematicamente as mensagens conforme o tema ou a conjuntura política.

Para isso, o Gabinete do Ódio utilizava perfis falsos, influenciadores aliados e canais alternativos, atuando fortemente em redes como Twitter (X), Instagram, Whatsapp, Telegram, empregando táticas de engajamento artificial (bots, hashtags orquestradas) manuseando ferramentas de monitoramento e rastreamento digital, podendo acessar dados confidenciais ou vazar informações sigilosas. Um verdadeiro dispositivo ditatorial de controle social.

Ninguém se engane, a defesa da democracia é tarefa permanente das pessoas de bem. Só consegue a justiça e liberdade mediante trabalho árduo, honesto, transparente e contínuo. Sem vacilo. Todos devem engajar-se fortemente na luta contra essa extrema-direita que teima em querer sufocar a democracia brasileira com seus tentáculos mentirosos.

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)

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