Com o título “A prova do Enem e os motivos por trás da grita reacionária”, eis artigo do jornalista Marcos Robério Santo. Ele aborda o bafafa criado em torno de questões do exame. Confira:
A edição 2023 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), iniciada no domingo (5), tem gerado uma série de discussões e análises as mais diversas ‒ o que até certo ponto é pertinente, dada a importância adquirida pelo exame, do qual participam milhões de pessoas. Chama a atenção, porém, a ojeriza que ele desperta entre alguns setores da sociedade e figuras expressivas do meio político.
Primeiramente, é importante fazer um breve histórico. O Enem foi criado em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com o intuito inicial de avaliar a qualidade do ensino médio do País. A partir de 2004, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o exame passou a servir para ingresso no ensino superior em instituições privadas, por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). E a partir de 2010 tornou-se o meio padrão de ingresso nas universidades federais.
É inegável que o Enem passou por vários problemas ao longo dos anos ‒ como na edição de 2009, quando o vazamento da prova fez com que ela fosse cancelada, e na edição de 2010, quando uma falha na impressão prejudicou alguns candidatos. Houve também vários casos de inconsistência nas notas, o que fez com que a metodologia de correção fosse alterada com o tempo. O exemplo mais notável é o da prova de redação, que antes era avaliada por apenas uma pessoa e, hoje, passa por três corretores, no intuito de que a pontuação final seja a mais fidedigna possível.
Quanto à prova em si, particularmente tenho algumas ressalvas ao modelo. A quantidade de questões (90 a cada dia de prova), por exemplo, me parece demasiada ante ao tempo de que o candidato dispõe. Isso faz com que a prova tenha de ser respondida em grande velocidade, com média de poucos minutos para apontar a resposta de cada questão. Ou seja, a capacidade de reação rápida ao estímulo passou a ter um peso muito grande. Não basta saber apontar o item certo. É preciso identificá-lo sem muito titubear. Em uma época de grande ansiedade, especialmente entre os jovens, em que especialistas apontam a necessidade da pausa, do respiro e da contemplação, tenho dúvidas se esse modo apressado é o mais interessante na hora de avaliar o conhecimento.
Outro ponto a meu ver discutível é o excesso de diretrizes com que os estudantes têm de elaborar a redação para que sua produção se encaixe no padrão considerado adequado pelos avaliadores.
Contudo, há vários méritos do Enem ao longo de seus 25 anos de trajetória. O mais importante deles é, por meio de suas questões, buscar promover a interligação de conhecimentos, a transdisciplinaridade e a reflexão crítica acerca de problemas reais ‒ algo que sempre esteve presente na prova, independentemente do governo no poder.
Nos últimos dias, as provas de Redação, Linguagens e Ciências Humanas (realizadas no primeiro dia de prova) geraram críticas. Casos como o da bancada ruralista, que aponta suposto “cunho ideológico” em questões sensíveis ao setor, ao abordarem temas como o desmatamento na Amazônia associado ao avanço do plantio da soja, e a lógica do agronegócio no Cerrado. Ou do senador Sérgio Moro (UNIÃO-PR), que afirmou que a prova tem “doutrina ideológica”, além de ser “confusa e mal redigida” e exigiu que o exame tenha questões e respostas formuladas de forma “clara, direta e objetiva”. Como ironicamente errou a grafia da sigla do exame em sua postagem, o ministro, como de praxe, virou alvo de piadas nas redes sociais. Indo além, o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) declarou que iria punir a filha caso ela obtenha bom resultado no Enem.
O que está por trás dessas e de outras manifestações contrárias ao Enem é, primeiramente, um senso de oportunismo. Como são mais alinhados ao campo político conservador, esses setores e figuras têm agora a chance de atrelar a tal “doutrinação ideológica” que dizem haver na prova ao governo atual, dito progressista. O INEP, que organiza o Enem, apresentou dados comprovando que 86% das questões que caíram na atual edição do exame foram formuladas durante o governo anterior, de Jair Bolsonaro, o que evidenciaria o caráter apartidário e autônomo com que a prova é feita.
Além disso, a prova do Enem incomoda porque ela faz pensar. Grande parte das questões exige a habilidade de conectar pontos, organizar informações, entender o que está nas entrelinhas e refletir sobre como tudo isso está presente em situações concretas. Essa forma de ver o mundo, na qual não cabem respostas prontas e instantâneas e onde não há espaço para dualismos simplistas, em geral desagrada a quem evita questionamentos mais profundos, a quem propaga informações falsas, a quem endossa teorias conspiratórias, a quem nega evidências científicas, a quem, enfim, prefere ver o mundo como ele não é.
Espero que, no decorrer dos anos, os responsáveis pelo Enem sigam absorvendo críticas construtivas a fim de aperfeiçoar o exame em seus aspectos logísticos, pedagógicos e avaliativos, de acordo com as exigências educacionais do mundo contemporâneo, sem esquecer da dura realidade enfrentada pela maioria dos estudantes. E que, ao mesmo tempo, sigam imunes à grita reacionária e seus ataques desprovidos de fundamento.
*Marcos Robério Santo
Jornalista.