“Entre as reformas estruturais que o país precisa enfrentar, a do sistema orçamentário deve ocupar lugar de destaque ao lado da reforma tributária”, aponta o economista Jurandir Gurgel
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A Emenda Constitucional nº 132 inaugura um novo regime tributário inovador baseado no IVA Dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS), em nível federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre Estados, Municípios e o Distrito Federal, com gestão colegiada por meio de um Comitê Gestor. Os objetivos declarados — 1º simplificação, 2º crescimento econômico e 3º redução das desigualdades — dialogam com a Teoria da Tributação Ótima, embora o alcance efetivo desses propósitos dependa de condições estruturais que transcendem o sistema tributário.
O grande dilema é o trade-off entre os valores de eficiência e equidade. Um sistema justo deve financiar as necessidades públicas sem causar distorções no sistema econômico. Nesse sentido, refiro-me ao primeiro objetivo que é o mais desejado pelos agentes econômicos dado a complexidade do nosso sistema tributário. O segundo é controverso, pois não se pode imputar ao sistema tributário a única via para colocar o Brasil no caminho do crescimento econômico. Questões como acumulação de capital físico, taxa de poupança, capital humano e progresso tecnológico e qualidade institucional são fontes e fundamentos do crescimento econômico sustentável. E o terceiro objetivo relacionado à redução da desigualdade, torna-se o mais desafiador e preocupante, uma vez que nossa desigualdade é secular e multifacetada.
O sistema tributário brasileiro teve suas origens moldadas pela herança colonial, caracterizada por forte centralização e práticas fiscais voltadas ao predomínio dos impostos indiretos que aprofundava as desigualdades já existentes. Nos primeiros anos após a Independência, as tentativas de reorganizar as finanças públicas — com a separação das fontes de receita e a distribuição das competências tributárias entre os diferentes níveis de governo — ocorreram sem um planejamento estruturado e coerente. A reforma tributária em curso é como déjá vu, é a lógica de que se muda alguns aspectos, mas a essência permanece inalterada. Ipso facto, a fiscalidade desde o império até os dias atuais persiste em essência privilegiar a base de incidência sobre o consumo e aliado a regressividade do IRPF, faz do nosso sistema tributário reconhecidamente regressivo.
A mini-reforma do IRPF aprovada recentemente eleva a isenção para rendas mensais de até R$ 5 mil e cria um desconto escalonado até a faixa de R$ 7.350. Acima desse valor, nada muda; os contribuintes seguem pagando a alíquota de 27,5%. Em paralelo, como forma de compensar a arrecadação do que foi isento, institui um Imposto de Renda Pessoa Física Mínimo para rendas anuais a partir de R$ 600 mil, com alíquota que chega a 10% acima de R$1,2 milhão, incluindo dividendos. Somado a adoção do mecanismo como cashback do IBS, acredita-se que se possa mitigar a regressividade existente do nosso sistema tributário sobre o consumo e renda.
Nessa linha, lembrar que o Brasil é um dos poucos países do mundo no qual vigoram os dispositivos da dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio, a isenção de lucros e dividendos distribuídos e a limitação de alíquotas no Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF). Um dos resultados desta evidência, considerando os dados de Rendimentos Totais x Alíquotas Efetivas do Imposto Pago – 2024 ano base 2023, verifica-se quem ganha de 240 a 320 salários-mínimos tem uma alíquota efetiva de 2,5% em patamar equivalente de quem ganha em torno de 2 a 5 salários-mínimos, cuja alíquota efetiva média é de 2,6%. Observa-se ainda que no Brasil 1% dos rendimentos maiores recebem 37 vezes mais em relação a faixa dos 50% dos rendimentos menores. Ainda temos 67 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, isto é, em média, pessoas que sobrevivem com até R$ 657 mensais, conforme parâmetros atualizados do Banco Mundial.
Outra constatação da regressividade do nosso sistema tributário decorre dos dados da OCDE, os quais revelam que os sistemas tributários dos países membros reduzem a desigualdade de renda em média 27% após a tributação, enquanto o Brasil reduz apenas 9%. Destaca-se também que o Brasil é o único país que está na lista dos 15 países mais ricos do mundo e na lista dos 15 mais desiguais do mundo entre 184 países analisados. Outo aspecto relevante é a alegativa de nossa “carga tributária ser elevada”, mas quando relativizada pela arrecadação per capita: em 2023, o Brasil arrecadou US$ 3.236 por habitante, frente aos US$ 16.481 da média da OCDE. Quando comparamos a carga tributária de 32,1% do PIB do Brasil vis-à-vis ao da OCDE de 33,9%, constata-se patamares equivalentes, o que não deixa de ser um paradoxo, ter uma carga tributária elevada e arrecadação per capita limitada. O que dizer então para grande de parte de brasileiros que eles moram num país rico, mas são pobres.
Mesmo que a Reforma Tributária por meio da simplificação promova eficiência econômica e o princípio do destino para os novos impostos sobre o consumo (IBS e CBS), possam fazer justiça na distribuição das receitas entre os entes federativos, ainda persiste a preocupação com probabilidade de restrição da autonomia dos entes regionais e o enfraquecimento do princípio federativo cooperativo consagrado na Constituição de 1988. Tal risco representa um retrocesso na capacidade de ação e protagonismo, notadamente dos municípios, cuja atuação é indispensável para o equilíbrio territorial e a efetivação do bem-estar social. Ademais, a autonomia financeira é o pilar que sustenta o federalismo cooperativo brasileiro, garantindo aos entes federados os meios necessários para exercer suas competências e concretizar, de forma compartilhada, a geração de valor público.
Essa preocupação com a autonomia financeira é decorrente dos aspectos da centralização da arrecadação, apuração, distribuição e normatização pelo Comitê Gestor do IBS, bem como dos mecanismos de compensação e redistribuição de receitas. Some-se a isso o aspecto da definição de alíquotas, embora estados e municípios possam fixar suas próprias alíquotas do IBS por lei específica, o Senado Federal fixará uma alíquota de referência, caso um ente não estabeleça sua alíquota, a de referência será aplicada, o que pode restringir a flexibilidade na política fiscal local. Esse novo modelo pode implicar centralização excessiva e restrição da autonomia dos entes subnacionais, contrariando o princípio do federalismo cooperativo da Constituição de 1988.
Outro aspecto preocupante diz respeito à composição do Comitê Gestor do IBS, cuja representação paritária entre Estados e Municípios tem tido questionamentos, pois 27 membros estaduais com 100% de representatividade terão peso igual ao conjunto dos 5.570 municípios, sem representatividade plena por meio de seus 27 representantes. Esse desenho gera contraditórios entre as entidades representativas dos municípios, pode reduzir o protagonismo municipal e limitar a flexibilidade fiscal local.
Entre as reformas estruturais que o país precisa enfrentar, a do sistema orçamentário deve ocupar lugar de destaque ao lado da reforma tributária. Isso porque as dimensões tributária e orçamentária são indissociáveis — ambas compõem a base da gestão fiscal e da capacidade do Estado em transformar recursos financeiros em objetivos humanos com sustentabilidade fiscal. O modelo orçamentário vigente revela-se altamente restritor, com aproximadamente 95% das despesas comprometidas com obrigações legais e vinculações constitucionais. Essa rigidez reduz o espaço de decisão do gestor público, obriga o uso contínuo de contingenciamentos que inviabiliza a formulação de estratégias de desenvolvimento de longo prazo. A situação é agravada pelas emendas parlamentares, hoje na ordem de R$ 50 bilhões, que fragmentam o orçamento, enfraquecem a lógica de planejamento e comprometem a coerência entre prioridades nacionais e execução financeira. O resultado é a perda de uma visão integrada de Estado onde o investimento público torna-se a principal variável de ajuste fiscal, sofrendo cortes orçamentários e afetando diretamente a continuidade de obras, a oferta de serviços e o atendimento das necessidades coletivas.
Outro ponto de atenção em relação à gestão fiscal é o ciclo vicioso no Brasil entre taxa de juros e déficit público, exigindo do governo a emissão de dívida com taxas de juros atrativas, encarecendo a rolagem da dívida que provoca a emissão de novos títulos ampliando o déficit nominal e consolidando a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) atingir 78,1% do PIB com juros nominais pagos de R$ 915 bilhões em setembro de 2025, desestimulando o investimento produtivo de longo prazo. Essa equação onde o retorno do capital investido em títulos públicos supera o retorno do investimento na capacidade produtiva das empresas, pode de imediato ser tentador, todavia, a falta de investimentos em inovação, em capital humano e baixa absorção do progresso tecnológico pode prejudicar sobre maneira a produtividade total dos fatores de produção, baixa competitividade e inibir o crescimento econômico sustentável tão desejado.
O caso brasileiro ilustra bem essa tensão estrutural. Nos últimos vinte anos, a taxa de juros real média, próxima de 4,7%, superou de forma persistente a taxa média de crescimento do PIB, em torno de 2,2%. Essa discrepância faz com que o custo da dívida pública cresça mais rapidamente que a própria economia, exigindo superávits primários sucessivos apenas para estabilizar a relação dívida/PIB. Em consequência, o “preço do dinheiro” se mantém elevado, encarecendo o investimento produtivo, reduzindo o espaço fiscal e limitando a capacidade do Estado de promover o desenvolvimento econômico e social.
Ainda sobre o debate da sustentabilidade fiscal, é essencial reconhecer que o equilíbrio das contas públicas deve ser compreendido sob uma ótica intertemporal e macroeconômica, e não como uma exigência anual inflexível. Como assinalam os economistas Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, o equilíbrio fiscal não precisa ser perseguido ano a ano, mas em média, ao longo do ciclo econômico. Déficits fiscais podem ser legítimos e até desejáveis quando resultam de investimentos públicos produtivos, sobretudo em períodos de baixo crescimento ou de desemprego elevado, quando o gasto público atua como instrumento de estabilização da demanda e de estímulo à atividade econômica.
Ainda no contexto das reformas, importante ressaltar a afirmação da ONU a qual preconiza que até 2050 mais 50% da população será urbana, essa realidade impõe desafios para gestão pública municipal. Em um mundo cada vez mais urbano, as cidades desempenham um papel fundamental, tornam-se motores das economias nacionais e centros de negócios e investimentos e que, portanto, merece atenção os aspectos estruturais do aglomerado das economias municipais. Com base no censo 2022 do IBGE, o Brasil já apresenta forte concentração econômica e populacional: 200 municípios que tem 50% da população concentra 64% do PIB nacional, e no Ceará, 50 municípios com 73% da população respondem por 85% do PIB estadual. Sendo assim, gerir as cidades será o grande desafio do século 21 e um protagonismo municipal será inevitável. Essa estrutura socioeconômica da nossa federação, onde há uma combinação da concentração de recursos na União com uma grande quantidade de municípios, muitos deles pequenos e com pouca capacidade de gestão própria, contribui para ineficiência do Estado brasileiro em atender às necessidades básica da população limitando o desenvolvimento local.
No contexto de um mundo em urbanização, as cidades estão sendo solicitadas a fazer mais com menos. Dados seus recursos finitos, os governos locais são solicitados a fazer escolhas difíceis, equilibrando uma série de necessidades urgentes que exigem uma ação governamental voltada a promover os direitos humanos fundamentais em matéria de moradia, mobilidade, saúde, educação, segurança; cujas ações sejam ambientalmente e economicamente sustentáveis. De igual modo, é importante enfatizar que ONU-
HABITAT de 2016, estabeleceu como premissa de um novo paradigma das cidades, fomentar estruturas e instrumentos efetivos, inovadores e sustentáveis que reforcem as finanças municipais e sistemas fiscais locais.
Reforça-se, assim, a urgência de uma governança multinível cooperativa, voltada para resultados geradores de valor público e que permita às cidades o protagonismo ao exercerem seu papel como força motriz do desenvolvimento nacional. Por fim, cito Rui Barbosa, o 1º Ministro da Fazenda do regime republicano: “Não pode existir matéria vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar a existência de nação, existência de povo constituído, existência de Estado, sem vida municipal”.
Jurandir Gurgel Gondim Filho
Mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação SINTAF
jggondim@terra.com.br