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“A tática do pé de quenga”

Francisco Caminha, cronista e ex-deputado. Foto: ALCE

Com o título “A tática do pé de quenga”, eis crônica de Francisco Caminha, advogado, cronista e ex-deputado estadual. Ele relembra personagens de uma Fortaleza antiga. Confira:

Antonio Barreto era o idoso vindo de Jaguaruana e acolhido pela nossa família saía cedo de casa, morava em um quartinho que papai adaptou para ele dormir nos fundos do quintal. Descia quase diariamente do ônibus no terminal da Praça das Crianças no Centro de Fortaleza e punha-se a mendigar na calçada da igreja do Coração de Jesus. Sentado no chão, mostrava aos passantes a ferida crônica localizada na região posterior do pé direito defeituoso que quase o impedia de andar. Eram enormes escaras abertas, inflamadas e purulentas. Com intuito de despertar mais a piedade dos pedestres e devotos, comprava um picolé de gelo de morango barato da “kimel” e esfregava nas feridas potencializando a impressão que era sangue vivo. Seu chapéu nas mãos era o gazofilácio que recebia as esmolas.

Já tínhamos muitas vezes tentado tratar as chagas, mas ele resistia. Recordo da cena em que papai derramava desinfetante e as larvas de moscas saíam agonizantes das úlceras. Depois, colocava antibiótico tópico e fazia o curativo. A única maneira de convencer Antônio Barreto, apelidado de Pé de Quenga, era oferecer dinheiro para aceitar o tratamento ou banho. Mas, logo se desfazia do curativo e do remédio. Não queria perder o objeto que despertava a misericórdia das pessoas nos arredores da igreja. Outras vezes, meu pai dava no quintal banho nele com sabão de coco para diminuir o fedor insuportável devido sua absoluta falta de asseio.

Quando não aparecia para dormir saímos em buscas no Centro ou no hospital de emergência. Na verdade, ele era recolhido pela polícia por crime de mendicância, ou estava na delegacia ou detido no asilo de mendicidade do governo do Estado. Diversas vezes foi liberado assim, meu pai ia até lá, se responsabiliza por ele e o trazia para casa.

Olhe a tipificação penal da legislação da época:
Decreto-Lei 3.668/41

Art. 60. Mendigar, por ociosidade ou cupidez:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses.
Parágrafo único
Aumenta-se a pena de um sexto a um terço, se a contravenção é praticada:
– De modo vexatório, ameaçador ou fraudulento.
– Mediante simulação de moléstia ou deformidade;

Pena prisão simples, de quinze dias a três meses.

Tinha ódio de quem o chamava por seu apelido que se reportava a deformidade na perna. Ao andar nas ruas alguns adolescentes gritavam de Pé de Quenga. Ele respondia: “É a mãe!”. Catava pedras para jogar nos meninos que fugiam rindo e correndo.

Nos bairros da cidade residiam personalidades pitorescas e as alcunhas faziam conexões com os aspectos físicos ou psicológicos. Lembro-me do Burra Preta, do Peru Baiano, do Valdick Soriano, do Roberto Carlos, do Rabo de Burro, do Delegado do Papoco. Veio agora na memória um mendigo com elefantíase, no chão próximo à Praça do Ferreira, a rogar por esmolas. E você leitor, lembra de algum mais?

Fico a refletir:

Quem se beneficia das feridas sociais crônicas do nosso país?

Quem mais utiliza na sociedade da estratégia de Pé de Quenga?

Será que essa tática é usada para a manutenção do Poder?

Uma vez uma ilustre figura pública me disse em um voo:

É ruim para nós inverno bom em ano de eleição.

*Francisco José Caminha

Advogado, cronista e ex-deputado estadual pelo Ceará.

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