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“Adultização Sexual: Felca e a infância sequestrada pelos algoritmos” – Por Sara York

Sara York é jornalista e professora

“O alerta de Felca mostrou que, por trás de sorrisos e likes, muitas vezes se escondem mães ‘inocentes’ demais para serem apenas inocentes”, aponta a jornalista Sara York

Confira:

Um vídeo que sacudiu o Brasil

Na última semana, um vídeo do youtuber e influenciador Felca viralizou e desencadeou uma onda de repercussões no Brasil. O humorista, conhecido pelo tom sarcástico, desta vez escolheu a seriedade para denunciar um fenômeno perturbador: a adultização sexual de crianças e adolescentes na internet, frequentemente estimulada pelas próprias famílias e potencializada pelas plataformas digitais.

Aliás tenho falado sobre isso com alguma frequência, veja aqui:

O conteúdo rapidamente ultrapassou milhões de visualizações, mobilizando investigações do Ministério Público, debates urgentes no Congresso Nacional e até a suspensão de perfis de influenciadores mencionados na denúncia. O próprio Felca disse em recente entrevista que o assunto lhe rendeu de 8,8 milhões de seguidores em sua rede principal um total de 15,5 milhões e crescendo!

O que é a “adultização”

Felca chamou a atenção para práticas cada vez mais naturalizadas nas redes sociais:

Crianças que posam como “coaches” ou empreendedores mirins, ensinando sobre investimentos ou política;
Adolescentes em coreografias de dança sexualizadas, cujas imagens se espalham entre diferentes públicos;
Pais e mães que expõem filhos em situações constrangedoras para arrancar risadas e cliques.

Segundo especialistas em infância, esse processo de adultização antecipa a vivência adulta, retira a criança de seu espaço de experimentação lúdica e abre brechas para abusos de diferentes naturezas, especialmente quando há exploração da imagem em contextos eróticos.

O “Algoritmo P”: quando a máquina contra a infância

Um dos pontos mais inquietantes da denúncia foi o chamado “algoritmo P”, como Felca nomeou a lógica das plataformas digitais.

O funcionamento é simples — e perigoso: quando um usuário interage com conteúdo que sugere erotização infantil, o sistema passa a recomendar vídeos semelhantes. Isso cria ciclos viciosos, nos quais imagens de crianças em contextos ambíguos circulam cada vez mais, muitas vezes chegando até redes de pedófilos.

Para o influenciador, trata-se de um mecanismo perverso de distribuição e lucro: o algoritmo não distingue inocência de exploração, apenas identifica engajamento.

Quando a ameaça vem de dentro de casa

A crítica de Felca, porém, não parou nas engrenagens digitais. Ele destacou casos em que as próprias mães e responsáveis atuam como agentes da exposição.

Um exemplo citado foi o de uma adolescente de 14 anos cuja mãe teria comercializado suas fotos em plataformas online. Há também registros de perfis inteiros de crianças administrados por pais, com conteúdos sugestivos ou humilhantes, publicados em troca de curtidas e monetização.

Esse fenômeno levanta uma discussão delicada: até que ponto a busca por fama e engajamento transforma pais em cúmplices involuntários — ou mesmo protagonistas — de práticas abusivas?

Caso Bell para Meninas — Felca relembra que, em 2019, um canal no YouTube expôs de forma vexatória uma criança/adolescente, identificada como Bell. Segundo Felca, a mãe fazia brincadeiras humilhantes, mesmo diante da recusa da filha. Em um dos vídeos, a menina resiste a vestir determinada roupa, e a mãe pergunta — de maneira quase imperceptível — em tom de ameaça, se ela “quer apanhar”. Órgãos de proteção à infância intervieram, e houve ação judicial para retirada da guarda.

Caso Karolyne Deher — O vídeo também chama atenção para o caso do canal que começou com vídeos de dança publicados pela adolescente em um perfil administrado pela mãe. Segundo o youtuber, era perceptível os inúmeros comentários de cunho sexual nas postagens. A mãe teria criado um canal pago (VIP) para vender imagens explícitas da filha, que tinha 14 anos à época. Conteúdos íntimos e com outros homens foram divulgados, e grupos de pedofilia passaram a ter acesso.

A face sombria das “mães inocentes”

O comportamento de algumas responsáveis ecoa com um quadro clínico descrito pela psiquiatria: a Síndrome de Munchausen por procuração.

Nessa condição, um cuidador induz sintomas em uma criança para receber atenção e reconhecimento. Transportado ao ambiente digital, o mecanismo se reinventa: mães que fabricam narrativas, expõem a intimidade ou até sexualizam os filhos para atrair engajamento social.

A fronteira entre orgulho materno e exploração midiática torna-se nebulosa. O que parecia simples — “mostrar o talento do meu filho” — pode se transformar em abuso digital, fantasiado de afeto e cuidado.

Reações institucionais e debate legislativo

A repercussão foi imediata. O Ministério Público anunciou a abertura de investigações sobre casos citados no vídeo. Paralelamente, o Congresso Nacional acelerou a tramitação de projetos de lei voltados à proteção digital da infância e à regulamentação mais rígida das redes sociais.

Enquanto isso, plataformas como TikTok e Instagram suspenderam contas de influenciadores acusados de exposição irregular de menores. Porém, especialistas apontam que as medidas ainda são tímidas frente à dimensão do problema.

“As plataformas lucram com engajamento, independentemente da origem. Sem regulação firme, continuaremos vendo crianças transformadas em moeda de troca digital”.

A infância como território de disputa

A denúncia de Felca escancarou um triplo nó:

A falha dos algoritmos, que privilegiam engajamento a qualquer custo;
A omissão das plataformas, que lucram com esse modelo;
A responsabilidade das famílias, que muitas vezes incentivam a exposição.

Por trás das polêmicas está uma questão ética e política central: quem protege a infância quando os próprios cuidadores a expõem e quando as máquinas a transformam em nicho de mercado?

O futuro da discussão

O caso abre espaço para uma reflexão urgente sobre educação digital, responsabilidade parental e regulação das big techs. Mais do que debate moral, trata-se de pensar a infância como um direito inalienável à proteção, à experimentação livre e à não-mercantilização de sua imagem.

O alerta de Felca mostrou que, na sociedade do espetáculo, até mesmo a inocência pode ser sequestrada. E que, por trás de sorrisos e likes, muitas vezes se escondem mães “inocentes” demais para serem apenas inocentes.

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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