“Ainda estamos aqui” – Por Mirelle Costa

Aprender a ser sem o bom exemplo. Assim foi a trajetória de minha mãe com a maternidade. Foi mãe pela ausência, pelo que queria ter vivido. Um dia ouvi que mais importante do que o que fizeram com a gente é o que fazemos a partir disso. A necessidade nos move. Eu sempre celebrei a sua escolha. Quando criança, minha gratidão ficava escancarada nas cartinhas escritas com capricho e letra de garrancho. Mamãe também nunca foi de muito agarramento, mas gostava de receber carinho (e ainda hoje gosta, eu sei). Acho que foi por ela que tive de desenvolver a habilidade de entender quando a necessidade é travestida de uma falsa recusa. Sabe aquela coisa “Não tô precisando de nada”, mas deixa de dar pra ver o que acontece?!.

Quando meu pai faleceu, eu tinha dez dias de vida. Mamãe conta que uma vizinha falou (em frente ao caixão do meu pai):
– Vera, se tu soubesse que Vicente iria falecer assim, dessa forma, era melhor que a Mirelle nem tivesse chegado.

E minha mãe respondeu:

– É ela que vai me dar força pra eu passar por tudo isso.

E eu tentei. Acho que tento até hoje.

Cresci ouvindo que não era todo mundo. Recebi amor e repreensão na mesma medida. Quando reclamava porque uma régua tão alta pra mim e pra minha irmã, ouvia:
– Você não imagina como é criar filhas sem pai.

Eu via.

Foi minha mãe que me ensinou que dinheiro nenhum do mundo compra a paz da gente.

A linguagem do amor da minha mãe era a LUTA. Ela aprendeu a amar lutando e eu acho que vivo do mesmo jeito.

Mamãe ter tido o primeiro AVC e ficar na cadeira de rodas não a impedia de ir ao supermercado comigo. Sempre fiz questão de levá-la. Ela mesma dizia:
– É só pra você ter trabalho de vir me buscar, trabalho com a cadeira de rodas, estresse pra estacionar (porque ninguém respeita vaga de cadeirante) .

Mas eu sempre ia com ela, fazia questão. Queria que ela pegasse o pacote de feijão, reclamasse do preço da carne, sorrisse pro rapaz da padaria, vivesse. Ela chegava renovada. Hoje não existe um dia sequer que eu entre no mercantil e não lembre ela dizendo:
– Olha aí o povo pega as frutas de qualquer jeito, nem escolhe, depois tão tudo doente e não sabe o porquê.

Realmente, nem eu nem ela nunca fomos pessoas “de qualquer jeito “ que fizéssemos coisas “só por fazer”. A dedicação era desde um simples supermercado até algo mais complexo. A cada passo hoje pareço escutar “Tu já vai colocar coisa que não presta aí no carrinho. Eu não ensinei isso, não sei onde aprendeu, cuidado com o seu intestino”.

Mamãe sempre cuidou da gente brigando. E eu me acostumei com essa forma de amar. Hoje eu retribuo o que aprendi e sinto muita muita saudade de não ter mais essa alegria que uma simples (e caótica) ida ao supermercado nos proporcionava.

Hoje, sozinha, escolhi cuidadosamente cada fruta, reclamo do preço das coisas, peço a carne “sem langanha”, como se assim honrasse a sua existência.

Há um ano e meio minha mãe teve um segundo AVC grave e ficou vegetativa. Ela está e não está, entende? Tipo tem, mas tá faltando? Daria tudo pra viver tudo aquilo de novo. Hoje, chego e falo com ela sobre tudo o que vi no mercantil pra que ela, por um instante, possa sentir também. Mesmo ela ainda estando aqui, eu já sinto muita muita saudade de tudo o que não posso mais viver.
Não, não virei mãe da minha mãe, não quero esse rótulo. Continuo sendo filha. Sempre lutarei para ser apenas filha e corrigirei quem falar o contrário. Mesmo que hoje eu cuide, mesmo que hoje absorva mil e uma demandas dela que não pode mais responder por si, os papeis não se inverteram como muitos pensam. Cuidar não é só papel de mãe, cuidar é papel de quem ama. Nem sempre quem é mãe cuida, nem sempre quem cuida é mãe.

Pra mim, hoje não é mais dia de comprar uma bolsa nova pra presenteá-la ou escolher um restaurante chique, mas eu continuo a escrever cartinhas para ler a ela.

A data começa a doer um pouquinho, deixou de ser um dia de festa.

Agora, mais do que nunca, é dia de presença.

Mainha, ainda estou aqui.

Estamos

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Respostas de 4

  1. Nunca esperei que você tivesse assim, uma história de superação..
    Admiro quem consegue driblar as adversidades.
    Sua mãe tem meu respeito .
    Parabéns por seu trabalho.

  2. Que lindo seu cuidado tão amoroso com sua mãe. O afeto e cuidar de quem amamos é recompensador e gratificante. E você faz isso como poucos.
    Parabéns

  3. Mirelle é impressionante como você consegue fazer a gente entrar na sua história e se emocionar.
    Suas palavras tem força, seus textos tem um grande poder. Parabéns 🥰
    Com certeza sua mãe sente todo seu amor e zelo por ela.♥️

  4. Eu fico imaginando o orgulho dessa mãe! Mirelle seu texto é emocionante e os cuidados que você tem com a sua mãe, lembram do quanto você a honra sendo uma filha amorosa e dedicada! Nesse Dia das Mães é importante lembrar do nosso compromisso como filhas dessas mulheres que a seu modo e dentro das suas perspectivas nos educaram da melhor maneira que elas podiam!

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