“Pergunto: quantas pessoas não puderam nem mesmo expressar suas angústias ao longo de suas vidas?”, aponta a pedagoga e contista Cynthia Rabelo. Confira:
Estava sentada observando o movimento em certa feira de livros, quando senta a meu lado uma senhora que começa a falar sentir pena da juventude de hoje. Diz isso apontando para um grupo de jovens que chegava num ônibus escolar. Confesso que, a princípio, não entendi que a mulher falava comigo. Não havíamos sido apresentadas e eu tampouco lembrava de tê-la encontrado em algum momento de minha existência. Entendendo que se dirigia a mim, a olhei com uma expressão de quem não compreendeu o que dizia.
Então ela começa a justificar seu raciocínio. _ “Sinto pena da juventude de hoje porque eles estão perdidos. E ainda tem uns livros que dizem que meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos”. É verdade que minha paciência anda pouca com pessoas preconceituosas. Para não perder a compostura com aquela senhora que não sabia sequer de onde viera, direcionei meu pensamento para um dia longínquo quando fui a um salão de cabeleireiro e fiz mechas de luzes para clarear meus cabelos. Trabalho excelente da profissional! Recebi muitos elogios, tanto no estabelecimento quanto em outros lugares que passamos antes de chegar em casa. Mas confesso! Ter clareado minhas madeixas não condizia com a imagem que mantinha de mim mesma. Todas as vezes que me olhava no espelho, enxergava outra pessoa o que vinha junto com desconforto e inquietação, a tal ponto que retornei ao salão no dia seguinte para desfazer as tais luzes.
Quando isso aconteceu, á era uma mulher adulta, e reconheço que minha vaidade é quase nula, sem contar que o “problema” era de fácil resolução. Diante da observação da senhora preconceituosa, parei para imaginar quão doloroso deve ser se olhar no espelho dia após dia e não se encontrar. Imaginou você criança, jovem ou adulto, nunca se reconhecer no corpo refletido no espelho? Quanto desconforto, quanta angústia, quanta dúvida e sofrimento deve ser viver assim! Sei que meu pensamento está posto de forma superficial, mas de fácil compreensão.
Mesmo assim, escutar a mulher que não consegue minimamente ter empatia ou compaixão externar piedade pela juventude de hoje e fazer alusão a livros que, supostamente, levariam “meninos quererem ser meninas e meninas quererem ser meninos” diante de um grupo de jovens sorridentes realmente me deixou reflexiva e desconfortável. Afinal, nem estamos falando de uma “modinha” da juventude de hoje nem muito menos da “influência” de certos livros ou autores. Pergunto: quantas pessoas não puderam nem mesmo expressar suas angústias ao longo de suas vidas? Quantas, ainda hoje, sofrem caladas sem poder ser quem realmente são?
Não sou psicóloga, sexóloga, profissional da saúde, etc. Sou apenas um ser humano cansado de tanto conceito preestabelecido. Seria tão bom se cada um vivesse sua vida do jeito que consegue e deixasse o outro ser como é, sem querer impor seus gostos ou valores, só respeitando, e, quando necessário, ajudando. Como seria bom cultivarmos o sentimento de fraternidade.
Não, senhora, não sinto pena dos jovens de hoje. Sinto pena e desprezo por pessoas que se julgam melhores do que as outras, mas que são tão infelizes que não conseguem prestar atenção em suas vidas e olham para os outros com olhar de desprezo. Tenho pena de jovens e idosos que não conseguem ver a beleza na diversidade!
Cynthia Rabelo é pedagoga e contadora de histórias
Ver comentários (6)
O texto da escritora e pedagoga Cynthia Rabelo, foi muito feliz na sua colocação ao retratar o comportamento e o pensamento do povo brasileiro perante a diversidade cultural. A riqueza de um povo está na sua diversidade, na sua pluralidade, sem a qual cairiamos na monotonia.
Cynthia sempre cirúrgica. Faço das palavras dela o meu descansar mental matinal. Por mais textos como esse!
Uaauuuuu. Viva a beleza da diversidade. Bela reflexão ✨✨✨
Amiga, faço minhas as tuas palavras e reflexão. Eu também ando sem nenhuma paciência pra esse tipo de conversa e mais, acho que a tal senhora " vinda não se sabe de onde" é que é digna de pena! Bjos no seu coração.
Imaginou você criança, jovem ou adulto, nunca se reconhecer no corpo refletido no espelho? Quanto desconforto, quanta angústia, quanta dúvida e sofrimento deve ser viver assim! Sei que meu pensamento está posto de forma superficial, mas de fácil compreensão.
Entenda, você foi luz!
Obrigado pela reflexão e lindo texto!
Cynthia, que texto lindo! É um imenso prazer ler textos como o seu!