“Uma anistia que permite a impunidade, em vez de buscar a responsabilização, pode ser vista como uma ‘justiça de transição reversa'”, aponta o economista Jurandir Gurgel
Confira:
Atualmente está em curso no Brasil o julgamento dos perpetradores dos movimentos golpistas relacionados aos atos de 8 de janeiro. Com farta apresentação de provas, como cidadão comum, percebi que, durante todas as argumentações em defesa dos oito réus, os advogados se concentraram em delimitar a autoria de cada crime e as condutas específicas, de forma a individualizar a responsabilidade sobre os crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado, conjugados à tese de um crime absorver o outro, numa estratégia clara de reduzir a dosimetria da pena ou mesmo inocentar os clientes do envolvimento dos crimes em epígrafe. O curioso é que não se nega a existência da ocorrência do crime, mas de sua autoria.
Em movimento paralelo, existe no Congresso Nacional uma movimentação para aprovação de um projeto de anistia ampla, geral e irrestrita para os envolvidos nos atos ocorridos em 8 de janeiro e dos movimentos conexos com conotações claramente eleitoreira e pessoalista. Estão invertendo a lógica tradicional da justiça de transição, que tem como premissa a justiça que vai ao encontro dos valores e fundamentos de um Estado Democrático de Direito. Portanto, uma anistia que permite a impunidade, em vez de buscar a responsabilização, pode ser vista como uma “justiça de transição reversa”, por não atender aos propósitos de memória, verdade e responsabilização, podendo até prejudicar reformas institucionais que fortaleçam a democracia.
Nessa linha, cumpre aqui revisitar o tema da anistia que tem uma longa tradição na história do Brasil. Do Império à República, em vários momentos a anistia esteve presente, foram 48 no total. Um movimento emblemático foi a Confederação do Equador, inspirada no ideário republicano e federativo, cuja anistia só foi concedida por decreto imperial aos envolvidos que não estivessem pronunciados pelo crime de rebelião, como Frei Caneca, que foi executado. De igual modo, o regime republicano não ficou incólume. Merece registro o movimento de 11 novembro de 1954 – um contragolpe para garantir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, que, posteriormente, em 1956, concedeu anistia ampla geral e irrestrita.
No Brasil, a anistia é um assunto polêmico devido ao histórico que a envolve. Durante o período ditatorial (1964-1985), no ano de 1979, foi sancionada a Lei da Anistia, após mobilização social formada por todos que eram contrários à Ditadura e suas repressões políticas, contudo, foi aprovada e sancionada e de maneira extensiva aos agentes públicos do regime em vigor, jogando ao esquecimento as práticas repressivas e reforçando o acordo implícito de impunidade.
O que chama atenção nessa empreitada atual sobre o desejo de anistia é que ela acontece sob um regime de Estado Democrático de direito, diferente das outras, que consistiam no reconhecimento de lutas contra estados imperiais e ditatoriais. Porém, há um agravante na construção atual: a busca pelo apoio de outro governo para retaliar autoridades da nossa Suprema Corte, impondo sanções no âmbito econômico, prejudicando todos os brasileiros e aviltando inequivocamente a nossa soberania. Mas, é inegável que o movimento dominante é conduzido por algumas lideranças que veem o Legislativo como extensão de seus interesses privados. E, mais uma vez, as massas sendo manipuladas em pleno 7 de setembro, dia em que comemoramos a nossa Independência e Soberania, carregando bandeiras de enaltecimento a quem está afetando valores tão caros de nossa história. É uma contradição e um desconhecimento histórico sem precedentes do conteúdo das lutas do passado.
Dessas variadas experiências, tiram-se lições. A mais importante é que, matizes ideológicos a parte, a democracia e o Estado de Direito não são valores discutíveis na atualidade. O projeto de anistia em curso apresenta variações significativas em seu escopo e abrangência, contudo, qualquer que seja o modelo a ser adotado, corre-se o risco de pavimentar o caminho para iniciativas de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado.
Um olhar diligente do movimento atual pró-anistia verificará o amparo no sentido tradicional dado à palavra “anistia”, relacionado à sua raiz etimológica grega – e que reside na noção de esquecimento. Estimular o esquecimento das condutas antidemocráticas estimula a repetição delas; nesse sentido, cumpre lembrar a citação do grande mentor do Projeto Brasil Nunca Mais, Dom Paulo Evaristo Arns: “Os povos que não podem ou não querem confrontar-se com seu passado histórico estão condenados a repeti-lo”.
Por fim, me atrevo a psicologizar e fazer uma analogia à teoria freudiana sobre “objeto perdido do desejo”, cujo conceito refere-se à busca incessante por aquilo que nunca foi plenamente encontrado. A referência não é o objeto do desejo em si, mas a causa do desejo, aquilo que o mantém focado e em constante movimento. Enquanto o objeto perdido da libido não for tratado em sua causa raiz, prevalecerá a compulsão da repetição.
Jurandir Gurgel é Mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação SINTAF (jggondim@terra.com.br)