Paz. Dizem que ela precisa estar dentro da gente. Às vezes, para ela reinar, o conflito torna-se inevitável. Um reinado de paz para uma “princesa” que sofreu violência doméstica e não acredita mais em conto de fadas está em olhar para dentro do seu “castelo” e dizer: A Torre é Minha. A ressurreição de um grupo de onze mulheres atendidas pela Casa da Mulher Brasileira do Ceará foi contada em um livro de 68 páginas. Sofrimento, abandono, fé e recomeço permeiam as narrativas. A obra foi o resultado da Oficina de Escrita Afetuosa, que aconteceu com o incentivo da Lei Paulo Gustavo, por meio do IX Edital das Artes, da Secultfor.
Durante um mês, mulheres vítimas de violência doméstica falaram sobre suas dores. Dessa partilha, nasceram 24 histórias que foram organizadas no livro “Após a morte do conto de fadas, a ressurreição”, lançado na Casa da Mulher Brasileira do Ceará, no último dia 29, quando se comemora o Dia Nacional do Livro.
“Minha filha não quer me ouvir. Muitas pessoas ainda não aceitam uma separação e algumas mulheres não admitem que exista violência dentro de casa. Preocupadas em mostrar uma vida perfeita nas redes sociais, muitas não se dão conta dessa realidade. O rompimento, quando se perde um parceiro, é também do ciclo de amigos que existiam antes do divórcio e até da família que nos abandona. As lembranças nos maltratam, mas para termos uma saída para esse martírio, é preciso essa coletividade. Merecemos uma nova oportunidade”, desabafa Sra T, pseudônimo de uma das autoras.
Os títulos de cada texto da obra foram baseados nos desabafos expostos em sala de aula, a partir das vivências que a Oficina de Escrita Afetuosa proporcionou. “Lidando contra o meu eu”, “Será mesmo ruim com ele e pior sem ele?”, “Vencendo a dependência”, “A Barbie é de plástico, eu sou de Verdade” e “Por que eu” são títulos das histórias contadas no livro e mostram que, na trajetória de desafios e dores, existe uma superação. Os nomes das mulheres foram preservados e todas as alunas criaram seus pseudônimos.
“A escrita doi tanto quanto o pensar. Ler o nosso passado na voz de todas vai representar muitas. Esse projeto foi dolorido e libertador ao mesmo tempo. Depois dessa oficina de escrita afetuosa, não parei mais de escrever”, conta Como uma Fênix. A autora dos textos “Até o vento me doía” e “Limpando as vestes da Alma” explica que sente-se como uma fênix, ave que simboliza renascimento e ressurreição.
“Este livro é um registro importante das emoções e fragilidades, como também do amadurecimento dessas mulheres nesse momento de reafirmação, quando elas se sentem totalmente responsáveis por suas vidas. Esta obra é o início e não o fim. Vê-las chorando de emoção por vislumbrar possibilidades representa um novo viver para elas e isso só foi descoberto com a ajuda da literatura. Para além do sofrimento, existe mudança”, comemora Maura Isidório, orientadora da Célula do Livro, Leitura e Literatura (Celiv), da Secretaria da Cultura do Ceará.
Um dos setores mais significativos da Casa da Mulher Brasileira é o da Autonomia Econômica, onde as mulheres têm a oportunidade de fazer diversos cursos, palestras e rodas de conversa de forma gratuita. Danielle Magalhães conta como foi a escolha das participantes do curso de escrita afetuosa. “Uma das premissas do setor é empoderá-las economicamente, como também social e politicamente, por meio do autoconhecimento e da valorização de seus potenciais. Temos grupos de WhatsApp, uma ferramenta que começamos a utilizar na pandemia e tem sido bastante útil até hoje. Quando convidadas para participar desta oficina, algumas não acreditaram que elas mesmas iriam escrever. Acredito que esses projetos incentivam as mulheres a buscarem a reconstrução de seus sonhos e projetos de vida. Ver o quanto elas estão realizadas com a publicação é emocionante. O brilho nos olhos delas com o produto de algo que participaram ativamente é lindo”, alegra-se a coordenadora do setor da Autonomia Criativa da Casa da Mulher Brasileira do Ceará.
A obra em formato digital é a contrapartida do projeto contemplado com o IX Edital das Artes da Secultfor. A versão digital foi entregue à Casa da Mulher Brasileira do Ceará, bem como alguns exemplares físicos, que também estão à disposição na Biblioteca Pública do Ceará, a BECE, para proporcionar amplo acesso à leitura. A capa do livro é do designer Gabriel Lopes, a leitura crítica é do jornalista Julião Júnior, a diagramação é da Expressão Gráfica, a ficha catalográfica foi organizada pelo bibliotecário Edvander Pires, a revisão ortográfica é do jornalista e professor Manoel Velloso e o cordel da contracapa é da cordelista Julie Oliveira.
“Ao me deparar com a força e a coragem dessas mulheres que, por meio da Oficina de Escrita Afetuosa, encontraram suas vozes, me senti profundamente tocada. Cada verso que escrevi se conecta a essa resiliência coletiva, essa capacidade de transformar dor em aprendizado e liberdade. Sinto que esse cordel não apenas representa o grito guardado de muitas, mas também o eco de uma nova estrada, uma onde todas caminham com mais força e autonomia”, explica a cordelista Julie Oliveira.
“Coisas que não falamos no cotidiano, quando colocamos no papel, tiramos um peso das costas. Agradeço imensamente por ter participado desse projeto. Aprendi muito com cada história partilhada, tudo isso impactou muito a minha vida. Aprendi que podemos ir longe, nunca imaginei ter minha vivência contada em um livro. Eu não tinha ciência do que era um relacionamento abusivo até ver uma luz que me fez enxergar que, no que eu pensava ser cuidado e amor, na verdade, era uma forma de violência. Confesso que ainda estou passando pelo processo da dependência emocional, mas estou de pé, lutando. Espero que, um dia, eu possa chegar aqui e dizer que consegui me libertar”, emociona-se Luz, que escreveu os textos intitulados ”Feridas na Alma”, “Um Sorriso Camuflado”, “Lidando contra meu Eu” e “Vencendo a Dependência”.
De acordo com o 18o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado neste ano de 2024, o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. É preciso um olhar mais atento sobre essas alarmantes estatísticas.
Como jornalista, eu, Mirelle Costa, conheci mulheres vítimas de violência doméstica e ouvi seus corajosos relatos. O jornalismo abarca, mas, nem sempre abraça. Como escritora, encontrei uma oportunidade de dar voz a essas mulheres por meio de suas histórias. Como idealizadora do projeto “Após a morte do conto de fadas, a ressurreição”, vi a rebeldia das alunas (algumas) travestida da recusa pela escrita. Logo depois, percebi que era uma proteção. Tanto que escutei na última aula: “A escrita doi tanto quanto o pensar”. Concordo, mas escrever também liberta e, às vezes, para libertar é inevitável doer.
Na primeira aula, algumas mulheres duvidaram de si e de sua voz. Muitas não percebiam que, a cada fala delas, um livro já nascia. Uma disse que se sentia “uma aranha em uma teia”, outra apontou que “de onde uma mulher sai chorando, nenhuma sorri por muito tempo” e eu também ouvi que “quem joga pedra não pode querer curar o machucado”.
Durante a oficina, pude perceber vários recomeços. Comemorei quando algumas alunas faltaram às aulas porque conseguiram um emprego. Uma aluna veio me pedir perdão pela letra, pois só tinha tempo e liberdade para escrever dentro do ônibus.
Não foram dias fáceis de aprendizado e esse livro também não é. A obra contém muitos gatilhos. Concordei quando uma aluna disse que ler é pior que escrever e completou: “Como um mosaico, cada história aqui é um pouquinho do que a gente já viveu. Nossa vida realmente rende um livro”.
Tive a honra de conhecê-las, explicar sobre escrita afetuosa, ensinar sobre pseudônimos e ler, em primeira mão, histórias de vida que contam revoluções. Testemunhos de fé de quem sabe que é preciso desarquivar sonhos.
Muitas se intimidavam com a língua portuguesa e eu penso que erros de gramática são corrigíveis, nós não podemos cometer erros de alma. Se as histórias do livro são crônicas ou micro contos, não importa. A obra que relata tantas dores também é cheia de vida.
Nessa caminhada de escuta e partilha de lições, foi impossível dizer quem mais aprendeu com quem, tanto que nossas falas se confundem e eu as coloco aqui: “A única certeza que eu tenho é que preciso continuar. Ninguém vai fazer isso por mim”.
Assim como elas se esvaziaram na escrita, quem tem a oportunidade de acessar o livro, também pode fazer o mesmo.
A violência doméstica retira dessas mulheres o direito de expor o próprio nome. Em solidariedade a elas, que me ensinaram tanto, fiz o mesmo. Na capa do livro, assino com meu pseudônimo, M.C.S.
O livro “Após a morte do conto de fadas, a ressurreição” pode ser encontrado na Biblioteca Pública do Ceará, a BECE, localizada na avenida Presidente Castelo Branco, número 255.
Respostas de 4
Amei . Jà estou. Relendo
Muito forte.
É preciso coragem para conseguir ler o que contém nesse livro.
Que incrível!!! O bem que fazemos à elas com a escuta é tamanho e também nos enriquece como pessoas, nossa humanidade flora e sabemos ali que para se fazer o bem não precisamos de muito.
Parabéns pelo importante trabalho, dedicação e por sua grandíssima colaboração em dar esperança e dignidade para estas mulheres.
Feliz por você e por sua contribuição!
#tmj
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Lindo e sensível trabalho, Mirelle! Parabéns!