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“As bets e a crise da arbitragem: vítimas ou beneficiárias?” – Por Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

“Explosão das apostas digitais expõe falhas na arbitragem e mostra como o lucro das bets cresce à sombra da manipulação”, aponta o historiador Fernando Horta. Confira:

O fenômeno das apostas esportivas no Brasil

O Brasil vive uma verdadeira explosão das plataformas de apostas esportivas. Os brasileiros destinaram cerca de R$ 240 bilhões às bets em 2024, sendo que, apenas no primeiro semestre de 2025, as casas de apostas registraram uma receita bruta de R$ 17,4 bilhões. O setor atraiu 17,7 milhões de apostadores brasileiros, com um perfil predominantemente jovem: 71% homens e 28,9% mulheres. A onipresença das marcas de apostas — estampadas em camisas de futebol, outdoors e redes sociais — transformou o cenário esportivo brasileiro em tempo recorde. A regulamentação, iniciada em 2018 durante o governo Temer e consolidada pela Lei 14.790/2023, autorizou 104 empresas e 230 marcas a operar no território nacional, criando um mercado que hoje rivaliza em lucratividade com os grandes bancos e indústrias tradicionais.

A ancestralidade das apostas

As apostas, contudo, não são uma invenção moderna. Desde os jogos de dados na Roma Antiga até as casas de apostas vitorianas na Inglaterra do século XIX, a humanidade sempre buscou transformar incertezas em oportunidades financeiras. Os gladiadores romanos tinham suas “odds”; os cavalos de corrida ingleses eram objeto de sofisticadas bolsas de apostas já no século XVIII. O que mudou radicalmente não foi o impulso humano de apostar, mas a escala, a velocidade e a opacidade dos mecanismos contemporâneos. Se, nas apostas tradicionais, o resultado dependia de eventos públicos e verificáveis — uma corrida, uma luta, um jogo —, as apostas digitais modernas incorporaram camadas de intermediação tecnológica que tornam impossível ao apostador comum compreender verdadeiramente as probabilidades reais que enfrenta.

O capitalismo destilado: informação privilegiada e algoritmos opacos

As bets representam o objeto destilado do interesse capitalista em sua forma mais pura: a monetização radical da incerteza por meio de assimetrias informacionais. Segundo o relatório da CPI das Bets, os jogos de cassino online — que representam cerca de 80% da movimentação nas plataformas — são estruturados com algoritmos não auditáveis que determinam os resultados com base em códigos internos ocultos, sem qualquer elemento aleatório externo. Enquanto o apostador opera sob completa opacidade, as empresas detêm controle total sobre probabilidades, timing de resultados e fluxos de informação. As estimativas da Associação Nacional de Jogos e Loterias projetam que o setor faturará R$ 240 bilhões anuais, com R$ 204 bilhões distribuídos em prêmios, deixando R$ 36 bilhões brutos com as empresas — uma margem que, mesmo considerando custos operacionais e tributação, gera fortunas estratosféricas. A promessa de “transparência” das odds é ilusória quando os próprios mecanismos que as determinam permanecem proprietários e inacessíveis ao escrutínio público.

A crise da arbitragem e o debate sobre culpabilidade

A crise recente na arbitragem brasileira ganhou contornos dramáticos quando William Rogatto, identificado como chefe de esquema de manipulação, revelou à CPI ter lucrado R$ 300 milhões rebaixando 42 times de futebol, pagando R$ 50 mil a árbitros que oficialmente ganham apenas R$ 7 mil por partida. A CBF reconheceu que a manipulação é prática antiga, agravada pelo surgimento das bets, jogando luz sobre um debate acalorado entre dois polos.

De um lado, torcedores e críticos apontam as bets como responsáveis diretas pela deterioração da integridade do futebol: ao criar mercados para apostas em eventos específicos (cartões amarelos, escanteios, substituições), ao facilitar apostas anônimas massivas e ao injetar bilhões em um ambiente historicamente vulnerável à corrupção, as empresas de apostas teriam criado os incentivos econômicos para a manipulação sistêmica. Esse argumento dos torcedores é, essencialmente, uma versão crítica da percepção do papel perverso que o capitalismo desempenha em qualquer atividade: onde há concentração de capital, opacidade e incentivos desalinhados, surgem naturalmente mecanismos de captura e exploração.

Do outro lado, as bets se posicionam como vítimas. Argumentam que cada resultado manipulado representa prejuízo direto, pois precisam pagar prêmios a apostadores que se beneficiaram da fraude. Segundo essa narrativa, as empresas teriam interesse em combater a manipulação, não em promovê-la. Contudo, esse argumento das bets não é correto — ou, no mínimo, é profundamente incompleto quando confrontado com a realidade matemática e estrutural do mercado.

Três mecanismos de lucro na manipulação

As bets podem, sim, lucrar enormemente com manipulação de resultados por meio de três mecanismos principais:

Ajuste de odds com informação privilegiada: quando uma bet possui informação antecipada sobre manipulação, pode ajustar sutilmente as odds para atrair mais apostas no resultado “errado” e menos no resultado manipulado. Por exemplo, se sabe que um cartão amarelo será forçado, pode oferecer odds ligeiramente melhores naquele mercado, arrecadando R$ 100 mil em apostas. Simultaneamente, a mesma empresa (ou parceira offshore) aposta R$ 50 mil no resultado manipulado em outra plataforma com odds normais. Resultado: paga R$ 200 mil aos clientes, mas recebe R$ 400 mil da aposta cruzada, lucrando R$ 200 mil líquidos.

Arbitragem reversa entre plataformas: grupos empresariais controlam múltiplas marcas de apostas. Uma plataforma “perde” ostensivamente com o resultado manipulado (mantendo a narrativa de “vítima”), enquanto plataformas irmãs ou offshore lucram exponencialmente apostando pesado no resultado combinado. A perda visível em uma marca é compensada pelos ganhos ocultos em outras, gerando lucro líquido para o conglomerado.

Controle algorítmico dos cassinos online: economistas estimam que pelo menos 80% dos pagamentos nas plataformas envolvem cassinos online, não apostas esportivas. Nesse segmento, as bets têm controle absoluto sobre resultados por meio de algoritmos proprietários. Aqui, não há sequer necessidade de manipular terceiros — a empresa programa diretamente as probabilidades e pode ajustá-las dinamicamente conforme conveniência financeira, algo matematicamente impossível de detectar sem auditoria externa dos códigos-fonte.

Conclusões e caminhos necessários

Diante desta análise, quatro conclusões se impõem:

Primeiro, os torcedores têm razão em apontar as bets como possível culpado pela crise na arbitragem brasileira. O fato de as empresas apresentarem lucros recordes — com receita bruta que supera a de grandes bancos e indústrias tradicionais — contradiz frontalmente a narrativa de “vítimas indefesas” (Cointelegraph Brazil Economy). Embora acusações específicas exijam provas estatísticas rigorosas para fundamentar punições, a estrutura de incentivos e a opacidade operacional das bets as colocam legitimamente no rol de suspeitos. A presunção de inocência não elimina a necessidade de escrutínio severo.

Segundo, o governo brasileiro precisa, via Congresso Nacional, alterar urgentemente a Lei 14.790/2023 para inserir exigências robustas de transparência algorítmica. Todo algoritmo que determina probabilidades, odds ou resultados em jogos de cassino online deve ser obrigatoriamente auditável por entidades independentes designadas pelo Ministério da Fazenda. Códigos-fonte proprietários podem ser protegidos sob sigilo industrial, mas seus outputs e lógicas de funcionamento precisam estar sujeitos a verificação externa permanente. Sem essa medida, o mercado opera essencialmente como uma caixa-preta onde fraudes sofisticadas são estruturalmente indetectáveis.

Terceiro, parte substancial do lucro das bets deveria ser taxada de forma especial e direcionada ao Ministério da Educação para programas amplos de letramento digital. O relatório da CPI revelou que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas em 2024, e aproximadamente 1,8 milhão de brasileiros entraram em inadimplência por conta das bets. O letramento digital não deve limitar-se à prevenção de dependência em jogos de azar, mas abordar de forma sistêmica como funciona a economia da atenção, os mecanismos de manipulação algorítmica, a ilusão de controle em sistemas probabilísticos e a extração de valor em plataformas digitais. As bets são apenas uma manifestação — particularmente predatória — de violências digitais mais amplas que incluem desinformação, vigilância e exploração de vieses cognitivos.

Quarto, a CBF deve ser cobrada com muito mais vigor a profissionalizar seu produto e estabelecer centros acadêmicos de estudos estatísticos sobre futebol e apostas. Quando um manipulador confesso declara que “a maior máfia está dentro das federações” e que o esquema existe há mais de 40 anos, torna-se evidente que a solução não virá das confederações sozinhas. Universidades públicas, institutos de pesquisa independentes e consórcios de clubes deveriam criar observatórios permanentes que monitorem padrões estatísticos anômalos em arbitragem, substituições, cartões e outros eventos apostáveis. Esses centros protegeriam não apenas a integridade esportiva, mas fundamentalmente o torcedor — a parte mais vulnerável dessa cadeia, que paga ingressos caros para assistir a um espetáculo cuja autenticidade não pode mais presumir.

O debate sobre bets e manipulação não é periférico — ele nos obriga a confrontar questões fundamentais sobre como o capitalismo digital opera na ausência de transparência, como mercados financeirizados transformam tudo em commodities apostáveis e como a regulação estatal precisa evoluir para proteger cidadãos em ambientes algorítmicos opacos. As fortunas bilionárias das bets não surgiram do nada: vieram dos bolsos de milhões de brasileiros, muitos dos quais mal podem pagar suas contas básicas. Reconhecer isso não é moralismo, mas o primeiro passo para uma regulação que coloque o interesse público acima da lucratividade privada sem limites.

Fernando Horta é historiador

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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