As memórias não nos redimem dos riscos do presente e do futuro – Por Luiz Henrique Campos

A interpretação de Fernanda Montenegro no papel de Eunice Paiva nas últimas cenas de Ainda Estou Aqui, nos oferece carga dramática que vai muito além da simbologia da memória como função psicológica superior. Sem dizer uma única palavra, as expressões de Fernanda ampliam e sugerem em cada um de nós, as possibilidades diante de tudo que foi apresentado no filme, sem desconsiderar a memória como recuperação de experiências, percepções e pensamentos que uma pessoa vivencia ao longo da vida.

Digo isto, em referência a fato trazido à tona recentemente pelo jornalista Demitri Túlio em sua coluna dominical em O Povo, quando relembrou trecho de entrevista feito por nós com um tenente-coronel da PM que fez fama nos anos 70 e 80, como chefe do hoje extinto Comando de Operações Especiais (COE). Na entrevista, este personagem dá versões para a morte de um militante do PCB na prisão, em 1975, afirmando ter sido suicídio; contrariando laudos e testemunhos, segundo os quais, teria sido assassinado sob tortura. O militar relata outros casos que à época da publicação chegaram a chocar a opinião pública.

Dias após a citação de Demitri, esse mesmo militar morreu e recebeu diversos elogios de amigos e companheiros de farda, alguns que conviveram com ele. E qual a relação disso com as expressões de Fernanda Montenegro no filme? Ora, o simples fato de que a sociedade brasileira não conseguiu dar um passo adiante no sentido de tirar lições de nosso passado. Talvez mais preocupante, seja até mesmo, naturalizar ações, discursos e práticas que nos fazem voltar ao exercício da barbárie, como temos visto com constância quase diária.

Esse retrocesso nos liga diretamente a um modelo de sociedade que não se assume, e de forma velada, vive esquizofrenia coletiva, se colocando em uma espécie de roleta-russa na perspectiva de mergulhar de vez em direção ao abismo. As expressões de Fernanda geraram boa conversa com meus filhos e minha mulher sobre o filme, onde nos perguntamos o que cada um achou. De gerações diferentes, é claro, as percepções não poderiam ser iguais, mas em todas, uma unanimidade, ou seja, além de lembrar o passado, não estamos livres do risco quando se vê e aceita a normalização da violência como justificativa para certos fins.

Luiz Henrique Campos: Formado em jornalismo com especialização em Teoria da Comunicação e da Imagem, ambas pela UFC, trabalhei por mais de 25 anos em redação de jornais, tendo passando por O POVO e Diário do Nordeste, nas editorias de Cidade, Cotidiano, Reportagens Especiais, Politica e Opinião.

Ver comentários (1)

  • Gostei, Lucam. O passado pode ser um “coisa boa” quando não nos violenta ainda,
    Abraços

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