“Após a morte de Padre Cícero em 20 de julho de 1934, suas terras foram herdadas pelos padres salesianos. O legado incluía a área do Caldeirão, faixa do semiárido transformada em próspero sítio com o trabalho da comunidade. A cobiça pelos bens desencadeou uma campanha de difamação contra o beato José Lourenço”, aponta o jornalista Flamínio Araripe. Confira:
Aquela viagem de trem pelos 608 km da ferrovia de Crato a Fortaleza conduzia sob escolta policial um ex-prefeito do Crato, José Alves de Figueiredo e o prefeito do município, Antônio de Alencar Araripe. Era 1934. Punidos por crimes inimagináveis numa democracia, os dois iam presos para a capital.
José Alves de Figueiredo publicou naquele ano um artigo no jornal “O Povo” em defesa do beato José Lourenço e Antônio de Alencar Araripe era advogado do líder rural da comunidade do Caldeirão, que teve todos os bens espoliados pelo governo, sem nenhuma indenização. Antônio de Alencar Araripe (1897-1989), prefeito do Crato de 1930 a 1935, era meu avô paterno. José Alves de Figueiredo bisavô materno.
José Alves de Figueiredo (1878-1961) havia governado o Crato nos anos 1925-1926. Na sua gestão como prefeito, lançou a pedra fundamental da Estação Ferroviária do Crato onde, naquele dia absurdo da história do Ceará, chegou conduzido pelos policiais. Os agentes da segurança insistiram para que ele fosse à bilheteria para pagar a passagem do trem com destino a Fortaleza.
– Não pago, porque não vou viajar a passeio -, o ex-prefeito recusou, com firmeza. E não pagou, informa seu neto Ronald Figueiredo de Albuquerque, professor da Universidade Regional do Cariri (Urca).
O jornalista cretense Lindenberg de Aquino conta que Zuza da Botica, como era conhecido o ex-prefeito, “foi preso por publicar um artigo jornalístico em favor da comunidade do Caldeirão”. A edição do jornal “O Povo” no dia 7 de junho de 1934 estampou a matéria de José Alves de Figueiredo – “O beato José Lourenço e sua ação no Cariri”. A matéria saiu republicada pela revista Itaytera (1961) e em livro pela coleção “Outras Histórias” (2006), do Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Ceará.
Um choro pela prisão injusta
Meu avô materno, o jornalista, escritor e historiador cratense José Alves de Figueiredo Filho relata, no prefácio do livro de Zuza, “Ana Mulata – contos e crônicas”, que só viu seu pai chorar duas vezes: “na ocasião em que foi injustamente preso, no tempo nefasto do Estado Novo” e quando, em 1923, morreu o seu filho Mário, aos 17 anos.
Em breve biografia de Zuza, publicada no site da Escola Pública do Crato com o seu nome, consta que “em 1936 José Alves de Figueiredo foi um dos poucos membros da elite caririense que por ocasião da destruição da Comunidade do Caldeirão, posicionou-se contra a atitude do governo e a ação militar contra a comunidade e buscou meios legais para reparar os danos sofridos pelo povo e reaver bens materiais que lhes foram expropriados durante a ação militar da qual a comunidade foi vítima”. Os dados biográficos citados foram colhidos de Lindenberg de Aquino e Raimundo de Oliveira Borges, em artigos publicados na revista “Itaytera”, do Instituto Cultural do Cariri, do qual são fundadores.
Em depoimento ao cineasta Rosemberg Cariri, no livro “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto”, Antônio de Alencar Araripe afirma ter sido constituído advogado de José Lourenço, levado por José Alves de Figueiredo, vizinho de sítio da fazenda coletiva do beato invadida pela polícia. Por causa de ter assumido a causa deste seu cliente, o advogado foi preso duas vezes e levado a Fortaleza.
A fílha de Antônio de Alencar Araripe, Moema Alencar Araripe, lembra que seu pai aproveitava as viagens, mesmo na condição de preso político do regime, para discursar contra a ditadura de Getúlio Vargas nas estações onde o trem parava.
Filme “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto”
Organizado por Firmino Holanda e Rosemberg Cariry, o livro “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto – apontamentos para a história – Roteiro, memórias, ensaios e reportagens” (Interart, 2007), é um documento fundamental para a compreensão da tragédia da comunidade liderada pelo beato José Lourenço. Dirigida por Rosemberg, a produção de cinema documentário “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” (1986) tem como coautor do roteiro e pesquisa o historiador Firmino Holanda.
Mário Limaverde, cujo pai morava em Santa Fé, distrito do Crato vizinho a Monte Alverne, onde ficava a comunidade do Caldeirão, registra, ao falar com Rosemberg Cariry, que “em defesa do beato, só o professor Zuza de Figueiredo, o José Alves de Figueiredo e Antônio Alencar Araripe, que era o advogado do beato naquela época, foram as únicas pessoas que falaram em benefício dele, porque os outros… não havia assim uma aproximação”.
Para explicar a detenção , a polícia comunicou as acusações a Antônio de Alencar Araripe, que ele era “protetor do beato José Lourenço” e arranjou pretexto de que “estava reunindo gente pra fazer uma revolução pra depor o governo, por isso e aquilo. Tudo era pretexto”, conta o advogado no depoimento gravado a Rosemberg Cariry. Nesta gravação, Araripe lembra que disse a Zuza, quando consultado sobre a causa em defesa do beato: “É pelo direito de retenção, ele tem o direito de retenção. É do código civil, não pode tomar assim sem dar coisa nenhuma”.
Uma fortuna expropriada
No livro, Firmino Holanda reproduz dado da revista Itaytera sobre a ação judicial movida polos advogados Araripe e Ademar do Nascimento Fernandes Távora, com pedido de indenização de 400.000 réis, o que, na época, constituía verdadeira fortunal”. A seguir, a relação dos bens espoliados pela polícia:
“Doze casas de moradia, uma de engenho; dois açudes de terra; um cercado de 4 mil braças de cercas de circunferência com mais de mil tarefas de algodão em produção; uma vazante de capim com 506 braças de extensão; uma capela em construção; quatro tarefas de cana-de-açúcar; 10 cancelões de madeira, e centenas de árvores frutíferas, nomeadas uma a uma; cercas de circunferência com mais de mil tarefas de algodão em produção; uma vazante de capim com 506 braças de extensão; uma capela em construção; quatro tarefas de cana-de-açúcar; 10 cancelões de madeira, e centenas de árvores frutíferas, nomeadas uma a uma.
“Nomeia ainda 181 bois, 18 burros, três cavalos de campo com todos os arreios, quatro de sela (entre eles “o de fina qualidade denominado Trancelim”); 90 cabeças de animais entre éguas, burros novos, jumentos e potros; 200 cabeças de caprinos, 150 lanígeros, 1 mil e 500 de porcos, cinco pavões, quatro emas, duas araras, 26 papagaios faladores, 1 mil 518 aves diversas, entre patos, marrecos etc., 150 galináceos e 2 mil mocós mansos.
“E mais de 600 arrobas de algodão, 300 quartas de farinha. 50 cargas de rapadura, 40 quartas de milho, 40 quartas de arroz com casca, 30 quartas de feijão, dois sacos de café, 30 sacas de sal, uma oficina de ferreiro completamente montada, com abundância de todos os seus utensílios necessários, uma outra oficina de carpinteiro, com tudo de necessário para o trabalho dessa arte; uma outra de flandreiro; e uma outra de sapateiro.
Além de uma infinidade de coisas, desde quatro máquinas de costura a vinhos e conhaque finos, o beato relacionou um relógio de parede grande e da melhor qualidade e várias jóias: um quilo de ouro de lei em medalhas, moedas, correntes e objetos de adorno, assim como um relógio de bolso Patek Philip de ouro de lei, com corrente e medalha do mesmo metal, dois relógios Omega, 12 anéis de ouro de lei (um com brilhante e outro com rubi”.
Cobiça pelos bens
Após a morte de Padre Cícero em 20 de julho de 1934, suas terras foram herdadas pelos padres salesianos. O legado incluía a área do Caldeirão, faixa do semiárido transformada em próspero sítio com o trabalho da comunidade. A cobiça pelos bens desencadeou uma campanha de difamação contra o beato José Lourenço. O testemunho de Zuza no artigo do jornal de 1934 desfaz todos os boatos ao colocar que este era um homem de moral, devotado aos princípios da fé religiosa, trabalhador e solidário que socorria os flagelados nas grandes secas, sem contar nada em troca.
Araripe conta que “a Liga Eleitoral Católica, que tinha dado muita força ao clero, muito prestígio ao governo. E mandaram espiões para verificar o que é que o beato tinha, o que não tinha. Espalharam boatos de que possuía não sei quantas mulheres”. O advogado contesta estes boatos: “As pessoas que vinham verificar ficaram admiradas com aquelas afirmativas, quando era exatamente o contrário. O beato só fazia era rezar, trabalhar em roças, tudo bem feito, tudo muito bom, uma ordem absoluta. Nunca deu trabalho aqui. Eu cheguei a tirar a certidão na polícia, no fórum, nunca houve nada, a menor coisa. Aliás, ele tinha era apoio e louvor dos donos de sítio, que precisavam de gente pra limpar aquela roças e o canavial em determinada época, em um dia, recorriam ao beato, ele mandava de lá 40, 50, 100 pessoas. Num instante limpavam, ajudavam os fazendeiros, não havia má vontade nenhuma.Nunca houve um inquérito, um chamado à polícia. Nada. Era rezando e trabalhando”.
Mentiras e assassinatos
Com a morte de Padre Cícero – observa Araripe, ainda no depoimento a Rosemberg – “o clero, que era contemplado com determinadas forças, cogitou logo de executar, nessa parte, o testamento que lhe interessava. E a conversa era nos termos de receber a propriedade. O beato era encarregado e não se falava nem se admitia indenização”.
“ O certo é que, afinal, puseram em execução o que desejavam: se apoderar sumariamente daquela propriedade. Mas, para acobertar a cena, prenderam diversas pessoas e simularam inquéritos, diligências para providenciar. Sei que ainda conseguimos fazer um levantamento do que foi espoliado do beato. Uma soma avultada por mais humilde que tenha sido”. “A polícia fez tudo, os maiores desatinos. Eu não sei de nomes, as pessoas que mataram, mas foram horrores aí, foram horrores. Ainda carregaram gente presa, deportaram, mas não conseguiram provar nem o mínimo. Eles diziam que o beato tinha um número enorme de mulheres. Era tudo mentira”, afirma Antônio de Alencar Araripe.
Flamínio Araripe é jornalista