“Finja que vê e que te veem. Afinal, não é fingida a dor que deveras sentimos?”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório
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Picasso teve essa fase. Maria Helena Vieira da Silva, a fantástica artista visual portuguesa, que esteve no Brasil e aqui encontrou a paixão da sua vida, Arpad, também tematizou esse tom. Vieira da Silva foi descrita pela escritora Agustina Bessa Luís, sua amiga e contemporânea de lutas da esquerda internacional, como alguém com um profundo respeito pelo essencial. Daquelas pessoas que não se ocupam, pormenorizadamente, do acessório. Abraçam o que pede cuidado e mergulham para além do superficial. Tenho algumas amizades como a Vieira. Numa humanidade de aparências, essencialistas podem até salvar vidas. Talvez tenham salvo a minha, diversas vezes.
Pego-me diante do espelho enfatizando que a perfeição não existe. Quer uma vida sem mágoas, invente os viventes, as conversas, as intocadas compreensões. Finja que vê e que te veem. Afinal, não é fingida a dor que deveras sentimos? Olho bem para mim e vejo no reflexo da minha alma perdida que há mãos que me afagam. Há sim. Apesar das cotovias serem lenda, a sabiá ser canção e o melro imaginação, há brilho a reluzir pelas frestas das semicerradas passagens. São como as lanternas de papel da Coréia, ladeando travessias em deslumbramento.
Em dia de céu, o dia apresenta-se completo. Parece desmaiar no horizonte, só que não. É lá, sempre lá, quando parelha com o mar que reanima tudo. Alucinação, alumbramento, sei não… Sei que por mais jogos que crie, mais bordados que forme no vai, vem da linha em teclado, não conseguirei aproximar-me da misteriosa sentinela da sensatez. Há sentido nas horas que passam, deixando-nos, ou não, em paz? Como dizia o outro, jamais saberemos.
A despeito do meu delírio, as manhãs continuarão se apresentando, pontualmente e as noites virão rendê-las, em acordo. É nessa paixão que se abriga a pedra filosofal dos alquimistas, o segredo da existência para céticos e crentes – todos cultuadores de fé. Enquanto o preço do café não cai, a mulher se esvai e a classe trabalhadora se distancia do paraíso, vamos de fantasia.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais