“A cegueira teria vindo de uma pedrada bem no meio da testa. Mas, se a vida lhe tirou a vista, Deus, pelas mãos de um franciscano, acendeu-lhe a inteligência”, aponta o arquiteto Totonho Laprovítera
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Ele gostava era de viver entre pedras, debaixo de um sol de rachar a moleira. Balançava a cabeça como quem concorda com tudo, sem dizer coisíssima nenhuma. Ninguém sabia de onde vinha, nem para onde queria ir. Não parava quieto. Com seu jeito réptil de ser e uma energia danada, chamavam-no de Calango Elétrico.
Como forma de defesa, Calango Elétrico tinha o poder do choque. Era ligeiro, certeiro, de sangue frio e se alimentava de luz. Os olhos esbugalhados viviam atentos, acesos, falantes. Andava com uns e outros, mas gostava mesmo era de seguir sozinho pelos caminhos secos do Sertão esturricado.
Defensor dos desvalidos, usava e abusava da fuga como estratégia contra os perigos. Cabra da peste, paciente como só ele, ganhava no cansaço qualquer inimigo. A notícia do aparecimento desse anjo da guarda soprou e se espalhou como poeira de conforto por tudo quanto era canto do Sertão.
Já Calango Cego, embora não visse, enxergava tudo. Diziam até que tinha o dom de adivinhar o futuro – mas, calado que só, guardava esse segredo com ele. Guiava-se pelo tato e pelo calor, que lhe mostravam por onde prosseguir. Quando ameaçado, fingia estar atento ao que se movia em volta. Temia a meninada armada de baladeiras – sobretudo os frios e perversos que, vendo o balanço involuntário do seu quengo, frescavam: “Calango quer morrer?”
A cegueira teria vindo de uma pedrada bem no meio da testa. Mas, se a vida lhe tirou a vista, Deus, pelas mãos de um franciscano, acendeu-lhe a inteligência.
Estava chuviscando no dia do encontro entre Calango Elétrico e Calango Cego. Foi no tal do “casamento da raposa” que os dois se esbarraram. “Que correria! Parece até que é elétrico!” – disse o Cego. “Que cabra distraído! Parece até que é cego!” – respondeu o Elétrico. As aparências logo se confirmaram e, dali por diante, viraram amigos. Compartes de sobrevivência.
Contam as tijubinas – fofoqueiras de plantão, que quando não têm o que dizer, inventam – o seguinte causo: deu-se um desacerto entre a lua do Sertão e o sol do Japão. Os dias e as noites se embolaram, e o mundo foi engolido por um breu sem fim. Nem fogueira, nem candeeiro, nem lamparina, muito menos estrelas davam conta daquele escuro flagelante. Aí, a Mãe Natureza, em sua sabedoria, tirou das cabeças dos dois calangos a solução. Do Cego, veio a clarividência: “Haja luz!” O Elétrico, então, acendeu os fios da imaginação e botou fim na treva arrepiadora.
Desde então, o Sertão inteiro passou a respeitar os calangos, que seguiram sendo do mesmo jeito: simples, serenos e certos de que fazer o bem não é mérito de “seu” ninguém – é só coisa natural.
Totonho Laprovítera arquiteto urbanista, escritor e artista plástico