Com o título “Carnaval e cinzas”, eis artigo de Ana Karla Dubiella, jornalista e escritora. Ela fala sobre a partidado amigo Affonso Romano de Sant’anna, na última terça-feira de Carnaval.
Confira:
“Entre os estudiosos de Rubem destaco dois: Ana Karla Dubiela, lá em Fortaleza, e Marco Antonio Carvalho, que morreu sem poder receber o Prêmio Jabuti pela bela biografia de Rubem”. (Affonso Romano de Sant’Anna)
Fim da folia, começo das reflexões da Quaresma e do jejum cristão. São sentimentos contraditórios de prazer e dever que invadem todos, adeptos ou não do Carnaval e da religião. Não há ateu que não sinta algo diferente com a volta ao trabalho, à rotina, aos problemas e soluções do dia a dia. Um luto esquisito, cansado e feliz, que se repete todos os anos e nos arrebata. Ainda mais quando recebemos uma notícia triste, como a partida inesperada de um amigo que, há anos, estava longe.
Conheci o Affonso quando o jornalista Augusto César Costa (então presidente do Centro Cultural Dragão do Mar) o trouxe a Fortaleza, se bem me lembro em 2005. Ele veio com a esposa Marina e, em visita a uma exposição no Mauc/Ufc, fugimos para uma sala qualquer e fiz a entrevista, a primeira de tantas, sobre o amigo e contemporâneo dele, Rubem Braga. Era o início da minha pesquisa sobre o gênero.
Cronista e poeta dos bons, professor de literatura da PUC/RJ, pesquisador da obra de Drummond (outro mineiro), Affonso também foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional e tem dezenas de livros publicados. Com esse currículo, Affonso poderia ser pedante, como tantos outros. Não, não, ao contrário. Gentil, generoso, prestativo, tinha paixão por aprender e ensinar. A partir de então, tornou-se minha fonte de pesquisa constante, lia todos os meus livros e comentava. Assinou o prefácio de “A traição das elegantes pelos pobres homens ricos – uma leitura da crítica social em Rubem Braga” (Edufes, 2007, já esgotado).
São muitas as histórias com meu amigo mineiro, que, por coincidência, era quase vizinho de Rubem, em Ipanema (Rio), e vizinho colado ao apartamento da Livinha, onde sempre me hospedo no Rio. Na Bienal Nacional da Crônica, ao ser abordado pelo repórter da TV Senado para dar entrevista ao vivo, ele escapou dizendo: “Querido, entreviste a Ana Karla, ela sim, sabe tudo sobre Rubem Braga”. Sem graça, tive de dar a entrevista. No centenário do Braga, ele foi convidado para um evento comemorativo e me enviou de presente a camiseta que ganhou, com o rosto do velho Urso
estampada.
Mas há uma história que me marcou mais que todas as outras. Era 2017 e fui lançar o livro “As cidades de RB e Walter Benjamin” na Livraria da Travessa, em Botafogo (Rio). De acordo com Marina, ele se arrumou todo e foi dirigindo o próprio carro, já atrasado. Marina insistiu para que não fosse, o tempo estava feio, ia ter tempestade. Ele teimou e, no meio do caminho, teve de voltar por causa do aguaceiro. Chateado por faltar ao compromisso, me ligou no dia seguinte convidando para um chá em sua casa, no final da tarde.
Foi a última vez que o vi. Somente na pandemia o procurei e ele não respondeu de jeito nenhum, o que não era usual. Ia convidá-lo para participar da coletânea de crônicas “Pandemônio”, como havia prometido tantos anos antes. Liguei pra Ana Miranda e tive a notícia de sua doença. Fiquei arrasada, mas não desisti, Marina e a agência Riff me autorizaram a escolher um de seus textos, deu tudo certo.
Marina Colasanti cuidou de seu amado Affonso por oito anos seguidos e partiu há pouco mais de um mês. No seu rastro, parte o apaixonado Affonso, em plena terça-feira de Carnaval. Algo me diz que, lá por cima, há mais Carnaval do que cinzas nesta sombria quarta-feira.
*Ana Karla Dubiela
Jornalista e escritora.