“Carta a Luiz Gama” – Por Sílvio Almeida

Silvio de Almeida é ex-ministro dos Direitos Humanos. Foto - Divulgação

“Por ocasião do Dia da Consciência Negra”, aponta o ex-ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, afastado pelo presidente Lula, após denúncias de assédio sexual

Confira:

Escrevo-te neste 20 de novembro com as mãos trêmulas e o coração apertado. Hoje é o dia da consciência negra, mas a verdade, meu irmão, é que para nós, deste país, a consciência ainda não chegou. Nós sabemos, como tu sabias, que o peso da cor não se anula com datas comemorativas, nem com discursos, nem com promessas sempre adiadas de igualdade e cidadania. A cada manhã, nós acordamos para provar que existimos. A cada noite, deitamos com a sensação de que ainda precisamos provar que somos humanos. E, mesmo assim, seguimos. Porque tu seguiste antes de nós.

Luiz, se eu pudesse, atravessaria este tempo que nos separa e colocaria a mão no teu ombro e lhe pediria um abraço. Diria que as injustiças que te feriram ainda vivem, que o país que tentaste libertar ainda tropeça na própria covardia, que ainda há mãos que nos empurram para o abismo e bocas que nos negam o direito de apenas envelhecer. Diria, também, que muitas vezes o mundo tenta nos reduzir à poeira que os poderosos pisam, tenta nos enterrar na lama da calúnia, tenta nos arrancar a voz e a honra como fizeram contigo. Mas diria algo mais: tu ainda estás vivo. Vivo como uma sentença de liberdade, vivo como um clarão na noite, vivo como a mão que impede que nos afoguemos.

Eu sei o que tentaram fazer contigo. Sei das mentiras que levantaram, dos perigos que enfrentaste, das noites em que a tua vida esteve por um fio, das vezes em que quiseram destruir não apenas o que defendias, mas o teu nome, tua dignidade, tua própria memória. Sei o quanto te atravessaram para impedir que atravessasses o Brasil. E, apesar de tudo, tu venceste o tempo. Tu atravessaste o país como um raio, e esse raio até hoje acende em nós a chama que não se apaga.

Há algo que preciso te confessar, algo que talvez doa mais do que os golpes que vêm de fora. Porque tu sabes, melhor do que qualquer um, que o racismo não se contenta em nos oprimir; ele quer que nos devoremos entre nós. Ele nos lança uns contra os outros como quem joga migalhas para famintos e depois observa, satisfeito, a disputa que ele mesmo criou. É cruel, Luiz, porque eles não têm medo de nos desagradar. Sabem que a ferida que carregamos e que nunca se fechou faz com que, muitas vezes, nos olhemos como adversários quando deveríamos nos reconhecer como companheiros. Sabem que a força política que poderia mudar o curso do país foi, geração após geração, sabotada por desconfiança, medo, ressentimento e luta pela sobrevivência.

Tu viste isso no teu tempo. Nós vemos no nosso. Eles nos fazem disputar ilusões — um pouco de dinheiro, um aplauso fácil, um lugar provisório à mesa do poder — e, por essas ilusões, muitos de nós acabam enganando uns aos outros, ferindo uns aos outros, vendendo a própria dignidade na esperança de serem poupados da próxima violência. E, enquanto isso, o racismo sorri. Porque sabe que, divididos, somos mais frágeis; sabe que, isolados, somos mais fáceis de quebrar.

E quando um de nós ousa romper esse ciclo, quando um de nós ameaça de verdade a estrutura do poder, quando um de nós — como tu — ergue a voz para além do permitido, aí o ataque é implacável. Eles não suportam a coragem negra. Não suportam a inteligência negra. Não suportam a altivez de um homem que se levanta sem pedir licença. Por isso te perseguiram com tanta fúria, por isso tentaram destruir teu nome, tua honra, tua própria existência. Porque sabiam que tu eras mais do que um advogado; eras a prova viva de que o país que eles imaginavam controlar poderia, sim, ser virado do avesso.

Por isso, Luiz, eu te peço: olha por nós quando nos esquecemos de que somos um povo só. Sustenta nosso espírito quando tentarem nos colocar uns contra os outros. Lembra-nos que a dignidade que defendeste não é propriedade de nenhum indivíduo, mas patrimônio de uma comunidade inteira. E que, se não caminharmos juntos, seremos sempre presas fáceis de um sistema que sobrevive justamente da nossa divisão.

Por isso te escrevo, para dizer que ainda sobrevivemos apesar das mortes simbólicas, apesar das tentativas de destruição, apesar do massacre das reputações. Sobrevivemos porque, de algum modo, tu nos ensinaste a sobreviver. Sobrevivemos porque aprendemos contigo que ninguém atravessa o deserto sozinho. Sobrevivemos porque a tua memória não é apenas lembrança, é abrigo. E porque cada vez que o mundo tenta nos apagar, o teu nome nos devolve a coragem.

Por isso, hoje, meu irmão e mestre, eu me ajoelho diante da tua presença e faço desta carta uma oração. Peço-te força, porque o mundo é bruto. Peço-te paciência, porque nossos inimigos são muitos e astutos. Peço-te resiliência, porque há dias em que o coração desaba e a alma se dobra. Peço-te coragem, porque muitas vezes a injustiça se apresenta com o rosto da lei e a perfídia com o tom da virtude. Peço-te que olhes por nós, Luiz, como fizeste pelos que não tinham voz, pelos que não tinham sequer o direito de pedir socorro.

Tu foste o advogado dos desgraçados, dos esquecidos, dos que sequer eram contados como gente. Tu foste o defensor das causas perdidas num país que insiste em perder as suas causas mais nobres. Não houve outro como tu. E quando a noite pesa sobre nós, quando o silêncio é hostil, quando tentam nos arrancar a esperança pela raiz, eu lembro da tua vida. E é como se tu estivesses diante de mim, dizendo que a dignidade não se negocia, que a honra não se entrega, que a vida é luta até o último sopro.

Olha por nós, Luiz. Olha pelos injustiçados deste tempo. Olha pelos teus irmãos que carregam cicatrizes profundas e, mesmo assim, continuam caminhando. Olha pelos que ainda lutam para provar a própria inocência, para defender sua honra, sua vida, sua história. Olha por nós, que seguimos tentando manter de pé não apenas o corpo, mas o espírito.

Que a tua força nos acompanhe.
Que o teu fogo nos proteja.
Que a tua justiça nos ilumine.
De teu irmão de luta e de destino.

Silvio Almeida é advogado, filósofo, professor universitário e ex-ministro dos Direitos Humanos

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