Exploremos a importância da literatura de cordel, reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo IPHAN, em nosso cotidiano. O cordel é tão importante que não consegui homenageá-lo como deveria apenas em uma coluna. Hoje vamos continuar o passeio por esse gênero tão nosso. O cordel está cada dia mais presente no cotidiano dos leitores, seja no mercado editorial ou nas publicações e em eventos literários do país e do exterior.
Filha do cordelista Rouxinol do Rinaré, que tem mais de trinta anos de vivência no cordel, Julie Oliveira começou a escrever aos dez anos de idade. Conquistou prêmios nacionais, como o Patativa do Assaré. Convidada para ir à Bienal de São Paulo, a cordelista também participou da VI Conferência Internacional, na Universidade de Leiden (Holanda). “Foi uma experiência incrível e histórica. A universidade é de 1575, a primeira dos Países Baixos, e também foi a primeira vez que recebeu cordelistas em um evento da instituição. Para nós, foi motivo de muita honra estar abrindo esse caminho, que certamente, muitos outros cordelistas farão. Fomos muito bem recebidos e já fomos convidados para o mesmo Congresso que ocorrerá em 2026”, conta Julie Oliveira, que além de cordelista é mestranda em Artes da Cena e Mediação Cultural em uma Universidade de São Paulo e fundadora da Teu Cordel, loja de cordéis e produtos nordestinos e coordenadora da Cordel de Mulher, um coletivo de mulheres cordelistas.
Pretas e Pretos na Literatura de Cordel: o folheto como mídia folkcomunicacional da negritude
Uma coletânea de dez artigos sobre a negritude foi publicada pelo jornalista Alberto Perdigão. O autor analisa o conteúdo de folhetos da literatura de cordel que abordam os temas da escravidão, abolição, racismo, heróis negros, o assassinato de Marielle Franco e o descumprimento da Lei nº 10.639/2003. “É o segundo livro de uma pesquisa inédita no país sobre o folheto de política da literatura de cordel, realizada por mim sem financiamento público ou privado. A temática da negritude no cordel também é inédita e se constitui numa excelente ferramenta para professores, para interessados em negritude e em literatura de cordel. O folheto informativo é uma mídia alternativa, popular e contra-hegemônica”, explica o jornalista e professor.
A política e a literatura de Cordel rendeu uma outra coleção, de doze artigos que, segundo o autor, discute o conceito de exclusão comunicacional tendo como base o contexto brasileiro e os caracteres alternativo, popular e contra-hegemônico do folheto informativo de política. “Dois outros artigos analisam o conteúdo de folhetos que narram a destituição da presidente Dilma Rousseff e as representações dos poetas-repórteres autores das referidas narrativas sobre o papel que exerceram no processo de destituição”, conta Alberto Perdigão, que também é mestre em políticas públicas e sociedade.
As obras podem ser adquiridas pelo contato com o escritor. https://www.instagram.com/falaperdigao/
Varjota em Cordel
O ganhador do prêmio Jabuti de 2018 na categoria poesia e livro do ano também é cordelista. Mailson Furtado lançou um projeto folclórico com o objetivo de contar a cidade de Varjota por meio de seus causos, lendas e personagens utilizando a linguagem da literatura de cordel. A coleção é formada por quatro folhetos: A lenda da Serpente do Araras; A profecia do frei Vidal da Penha – A cama de baleia de Sobral e o açude Araras; O avião do açude Araras; e Surrões X Biquaras – ou sobre a rivalidade de Reriutaba e Varjota. “Varjota em Cordel passeia pela geografia, folclore e historiografia de aproximadamente dois séculos de ocupação da região da várzea da jusante dos rios Acaraú com Jatobá, onde na década de 1950, torna-se a terra de um dos mares do sertão brasileiro, o açude Araras. A quadrilha junina Pisa na Fulô trouxe, este ano, o cordel da profecia de Frei Vidal como tema.
Nada mais justo do que terminar a coluna aqui te proporcionando a degustação do cordel de Mailson Furtado, A lenda da Serpente do Araras
Em um tempo bem distante
 Numa várzea do Sertão
 Esta história que inicia
 Encontrou de fato um chão.
 Bem pertinho do Ipu,
 Nas águas do Acaraú
 Começou toda a questão.
 É um dizer que encabula
 No sertão do Ceará.
 Uma serpente gigante
 Morando perto de cá.
 Mergulhada num açude,
 Perturbando a quietude
 Do sossego que aqui há.
 Pra entender tal enredo
 É preciso apresentar
 Como tudo isso se deu
 Antes do povo falar
 Afinal tudo se liga
 Nessa história bem antiga
 Que aqui venho contar.
 Um pequeno povoado
 Se instalou no tal baixio.
 Da roça, vivendo o povo,
 Naquela beira de rio.
 No trabalho do roçado
 E da criação de gado
 No diário desafio.
 Algumas poucas famílias
 Construíram o seu lar.
 Umas vindo do sertão,
 Outras do rumo do mar.
 Encontrando seu sustento
 Em um lento crescimento
 Foi se expandindo o lugar.
 Aportando certo dia,
 Vindo de longe em cortejo
 Padre Macário Bezerra
 Demonstrou grande desejo
 De ali naquela estrada
 Construir sua morada
 Bem naquele lugarejo.
 Padre Macário Bezerra,
 Nascido na Ibiapaba,
 Natural de Campo Grande,
 Atual Guaraciaba,
 Ordenou-se em Fortaleza,
 Mas logo teve certeza
 De o sertão ser sua taba.
 Instalou-se na ribeira,
 Construindo uma fazenda
 A qual nomeou Varjota
 Pra aumentar a sua renda.
 Sendo assim com este plano
 Se manteve soberano
 Ficando sua moenda.
 Macário, por certas vezes,
 Com mulheres se engraçou.
 Deixando uma descendência
 Que ele nunca renegou.
 Foi, pela igreja, afastado,
 Porém reabilitado,
 Esquecendo o que passou.
 Sua fazenda Varjota
 No território do Ipu
 Ficava no encontro do
 Jatobá e Acaraú.
 Sendo lá antigamente,
 A morada de outra gente –
 Tapuia-areriú.
 Ao entorno da fazenda
 O distrito se expandiu.
 Criou, o padre, uma igreja
 E pra ela decidiu:
 Louvar Senhora Santana
 Nos domingos da semana –
 Tudo de fé se encobriu.
 Para além de muitas obras
 Levadas bastante a sério.
 O padre sem perder hora
 Seguindo seu ministério.
 Lutou com muita peleja,
 E depois de feita a igreja,
 Veio a vez de um cemitério.
 Enfim um lugar sagrado
 Pra ali enterrar os mortos.
 Já que o distrito crescia
 E seus defuntos expostos.
 Sem haver um lugar digno
 Que pra muitos era um signo
 De caminhos muito tortos.
 E seguindo nos conformes
 Já era o século vinte.
 O padre havia partido
 E o maior contribuinte
 Desta história que aqui conto,
 Eis aqui o dito ponto
 Do grande enredo seguinte.
 Chegaram nos anos secos,
 Uns doutores pra estudar.
 Co’um projeto de um açude
 Para seca apaziguar.
 Com recurso federal,
 Vindo lá da capital
 Para água represar.
 O projeto era enorme
 E a centenas assustou:
 “Um mar d’água no sertão” –
 Muita gente debochou.
 “Pode até nos dar fartura,
 Senão profunda tortura
 Por quem a Deus afrontou”
 “Tem lá prestes essa história,
 Inundar todo o sertão.
 O chão do padre Macário,
 Isso pode ter perdão?
 Desconjuro, minha gente,
 Duvido que vá pra frente,
 Tudo isso é falação.”
 Foram-se mais de três décadas,
 Esperando o prometido.
 Muitos sequer recordavam,
 Outros haviam morrido.
 E o projeto retornou,
 A muita gente assustou
 Divulgado o ocorrido.
 “E agora, meu santo Deus,
 O que vão fazer com nós?
 Nessa terra a gente vive,
 Desde nossos bisavós.
 Sair assim de repente
 Pra um lugar tão diferente,
 Como fica tudo após?”
 Corria o fuxico solto
 Em toda aquela ribeira.
 Alguns levavam a sério
 Outros achavam besteira –
 Mudar da noite pro dia
 A secular moradia
 Assim daquela maneira.
 O governo declarava:
 “Pra que a preocupação?”
 Afinal receberiam,
 Todos indenização.
 Por deixarem ali a vila,
 Da maneira mais tranquila,
 Se mudando pra outro chão.
 A maioria aceitou,
 Alguns poucos já nem tanto.
 Afinal ali viviam
 E do nada ir pra outro canto.
 Mas saída não teria,
 Era se aguardar o dia
 Com lamento e muito pranto.
 Assim a vida seguindo,
 Todos em arribação.
 Indo muitos trabalhar
 Bem ali na construção.
 Lotando naquelas margens,
 Centenas de hospedagens
 Com muitos àquele chão.
 Lembravam do cemitério
 Na velha vila esquecido:
 “Isso vai dar muito errado,
 Muitos aí num dão ouvido.
 Mas deixar de lado um morto
 Só traz é caminho torto –
 Não se afoga um falecido!”
 E lá ficaram os túmulos
 À luz do sol a quarar.
 Muitos até duvidavam
 Que água fosse inundar:
 “Chega lá nada, cumpade,
 Esses doutor da cidade,
 Gostam muito de aumentar.”
 Entre o monte das Araras,
 Ali na beira do rio,
 O barrar do Acaraú
 Um enorme desafio
 Subir a grande barragem
 Pra tornar-se uma miragem
 Naquele vasto baixio.
 Tanta gente trabalhando
 Gastando muito suor,
 Sem descanso noite e dia
 Dando sempre o seu melhor
 O serviço prosseguia
 E de longe já se ouvia
 Os bradados do major:
 “Bora, bora trabalhar,
 Por aqui não tem moleza!
 Quem não quiser, vá simbora,
 Não se tolera fraqueza!”
 Muitos deles não aguentavam,
 E de canto murmuravam
 “Onde tá a tal riqueza?”.
 Logo chegaram as máquinas
 Gigantescas e bonitas.
 Praquele povo do campo,
 Umas latas esquisitas.
 “Isso são as bestas feras,
 Que bem no final das eras,
 Lá na Bíblia tão descritas”
 O gigante maquinário
 Trabalhando diferente,
 Deixava desconfiados
 Dezenas daquela gente.
 “Tal troço é coisa incerta,
 Ou nós ficamos de alerta
 Ou ele passa na frente.”
 “Me digam, donde se viu,
 Um bicho desses assim?
 Pois se quiser mata é tudo,
 Acaba com nós tudim.
 Não, não é coisa de Deus,
 Tomando emprego dos seus
 É o começo do fim”
 Acidentes nesse ínterimNo lugar aconteceram.
 Acometendo operários
 Que em serviço faleceram.
 Manejando os maquinários,
 Tempos tristes e lendários
 Que por ali sucederam.
 Mesmo com todos pesares
 Tudo em paz se encaminhava.
 A obra seguia ligeiro,
 Logo, logo inaugurava.
 Prometendo só fartura
 Para conter toda a agrura
 Da vida que se passava.
 Julho de cinquenta e oito
 Teve a obra o seu final.
 Últimos baldes de terra,
 Muito trabalho braçal.
 Porém foram alguns anos
 Pra cumprir de fato o plano
 Da promessa inicial.
 A barragem concluída
 Ao povo ela foi entregue.
 Um volume d’água imenso
 Que medir ninguém consegue.
 Foi uma festa tremenda
 Tempos depois veio a lenda
 Que nessa história prossegue.
 Logo no primeiro inverno
 A várzea inteira inundou.
 Calando a boca de gente
 Que no início duvidou.
 “Um mar d’água no sertão!”,
 Embrejou-se todo o chão
 Como tanto se falou.
 E agora com isso dito
 Começamos este conto
 Da lenda que de tão dita
 Muita gente deu seu ponto.
 E chegando nesses dias,
 Vão cruzando muitas vias
 Com verdades em confronto.
 Tudo, tudo isso começa
 Logo na primeira cheia
 Que animou o povo todo
 Depois de tempos de peia.
 Foram muitas as pessoas
 Que soltaram as canoas
 Pra buscar a sua ceia.
 Era um mundaréu de peixe
 Friviando na ribeira.
 Uns já pulavam no barco,
 Outros nadavam na beira
 Piau, Traíra e bodó,
 O landuá dando nó –
 Fartura demais na feira.
 Nas margens tantas mulheres
 Com suas trouxas chegavam.
 Cantando cantigas velhas
 Enquanto as roupas lavavam,
 Torcendo forte os tecidos
 Depois de bem escorridos
 Lá no lajeiro deixavam.
 No dito Valha-me-Deus,
 Parte mais funda do açude,
 Dois homens ali pescavam
 Numa grande quietude.
 E do nada uma pancada,
 Mas ali não se viu nada
 Para explicar a atitude.
 Os pescadores com medo
 Com o estranho acontecido:
 “Mas que marmota foi essa?!
 Por pouco nós tem morrido.
 Valei-me, Nossa Senhora,
 Nos proteja nesta hora
 Atendei nosso pedido.”
 Passados alguns minutos
 Com a água já quieta.
 Lá se vem outra pancada
 Sacudindo a mesma reta.
 Uma cobra gigantesca
 Duma aparência grotesca
 Estrebuchava inquieta.
 “Ôh meu cumpade, valei-me,
 É uma cobra gigante!
 Vamos simbora pra casa,
 Antes que o bicho nos jante.
 Bote as tarrafas pra dentro
 Que aqui eu mesmo num entro
 Até que alguém a espante.”
 No outro dia no lugar
 Não se falava outro assunto:
 “É muita mentira dita,
 Muito converseiro junto,
 Num afirmo, nem desminto
 Pois o açude é recinto
 Duma ruma de defunto.”
 “Desconjuro, desconjuro!
 Creia em Deus, Nosso Senhor.
 As almas já tão no céu,
 Deixe de tanto temor.
 Que essas águas são fartura,
 Isso parece loucura,
 É dizer de pescador.”
 E seguiam com a teima
 E a conversa se espalhando,
 A maioria mangava
 E seguia ali pescando.
 Até que veio outro fato
 Se somando ao relato
 E o dizer foi aumentando.
 “O meu novilho sumiu,
 Bem aqui nessa beirinha.
 Não tinha como morrer
 Nessa água tão rasinha.
 Foi um bicho que puxou
 E lá no fundo afogou
 O meu bezerro agorinha.”
 “Pois foi a cobra, cumpade,
 Que na rua andam falando.
 Se apregou com seu novilho
 E depois saiu nadando.
 Se alua daqui em diante,
 Se não carrega o restante,
 De um por um todo seu bando.”
 Porém, houve, certo dia
 O maior acontecido
 Um menino ali nadando
 Ficou desaparecido,
 Sem jamais ter sido achado
 Nem podendo ser velado –
 Foi um tremendo alarido.
 “Oh Minha Nossa Senhora,
 Nos salve dessa agonia.
 É muita história ruim,
 Toda hora, todo dia.
 Que não aguentamos mais,
 Tantos medos, tantos ais.
 Valei-nos, virgem Maria.”
 “Mas disso já se sabia…”
 Falavam os mais antigos.
 “Não se afoga um cemitério,
 Desprezando seus jazigos.
 Lá é coisa que se faça,
 Só ficar buscando graça
 Com agouro pra castigos.”
 “O Cemitério, lá nada!,
 Há coisa muito pior.
 E os que em serviço morreram
 Derramando o seu suor?
 Tão com as almas vagando
 Por essas águas boiando
 Atrás de um final melhor.”
 “O padre Macário nunca
 Deixaria acontecer.
 Afogarem a capela
 Que ele mesmo fez nascer.
 Só podia dar errado,
 Blasfemar com o sagrado
 Pro progresso acontecer.”
 “Sem falar nas bestas feras,
 Os bichos feitos de lata,
 Ali nas águas imersos,
 Depois de virar sucata.
 Gerando grande debate
 Por estarem sem resgate
 Até a presente data.”
 Assim com tantos dizeres
 Tal história ganhou o mundo.
 Foi gente benzer as águas,
 Desde o raso até o fundo.
 Entre tantas simpatias,
 Naquelas águas bravias
 Pelo medo oriundo.
 Foram passando-se os dias
 Toda a vida se acalmando.
 Da serpente, só boatos
 E os fuxicos aumentando.
 Mas nenhuma aparição
 Pra botar em aflição
 Quem tivesse ali morando.
 A cidade só crescendo
 Nos aceiros da barragem
 Foi voltando a ser Varjota
 Numa bonita paisagem.
 Com um novo imaginário
 Da água como cenário
 E barrada àquela margem.
 O que dizem virou lenda
 Lá no Araras – A serpente.
 Afogada dentro água,
 Virou barco, matou gente.
 No Valha-me Deus se entoca,
 É o que conta a fofoca
 Na rua ao sol poente.
 As décadas se passando,
 Alguns querendo saber,
 Se era mesmo verdadeiro
 O que espalhava o dizer.
 “Seria tudo uma invenção,
 Visagem, assombração,
 Só pro povo se entreter?!”
 Sem certeza da verdade,
 Vai seguindo a narrativa.
 Na boca do povo mora
 Quando gastam a saliva.
 Entre céus e outras luas,
 A lenda ganhando às ruas
 E a serpente se põe viva.
 E se alguém por esses dias
 A serpente espera ver,
 É ir pro meio da rua
 Pra uma conversa bater.
 Que ela logo se coloca
 E do nada sai da loca
 Pondo gente pra correr.
 Na boca do povo estando,
 Este dizer já antigo.
 Anunciado nas águas
 Com o citado perigo.
 Hoje lota outras aldeias
 É em artérias e veias
 Que esta lenda ganha abrigo.
 E por aqui ponho um ponto
 Nesta história apresentada.
 A seguir como uma lenda
 Muito dita e recontada.
 Sempre e sempre aumentando
 Por tantos que vão contando
 Este assunto na calçada.
(Varjota em Cordel pode ser adquirido no site https://mailsonfurtado.com.br/ ) 
Ver comentários (2)
Que texto! Parabéns pela escrita certeira de um assunto tão nosso!
Parabéns pela excelente matéria...