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“Cultura em fichas e em ‘notas de rodapé'”

Paulo Elpídio de Menezes Neto é cientista político, professor e escritor, além de ex-reitor da UFC

“Gostosos, são os exercícios de memória acumulada, o uso do que ficou das leituras persistentes, isto a que se poderia chamar de cultura própria”, aponta o cientista político Paulo Elpídio de Menezes Neto. Confira:

Salvo exceções que sempre as há, considero as “notas de roda-pé”, as citações e “janelas de aeração”, aquelas citações soltas em negrito” — um incômodo tropeço.

Em muitos casos, o autor serve-se desse expediente para uma demonstração da extensão do seu aprovisionamento cultural. Do seu latifúndio de complexidades… Do que é capaz, se a tanto for provocado.

Bons, gostosos, são os exercícios de memória acumulada, o uso do que ficou das leituras persistentes, isto a que se poderia chamar de cultura própria…

A maior parte dos textos acadêmicos, afogados de bibliografia, é mal escrita e chatíssimos para o leitor inteligente. Data venia. E para o medíocre vaidoso em busca de cultura à retalho, adquiridas em postas.

As teses são uma espécie de enquadramento carcerário; para serem lidas civilizadamente precisam ser traduzidas para a linguagem comum dos leitores… Não que lhe faltem substância e brilho. Há entretanto daquelas que não subsistem a um mergulho crítico mais profundo. Há delas exceções respeitáveis.

Não é que os textos, postos a ferros pelo ascetismo estilístico, de fácil leitura, devesse ser o modelo para a comunicação escrita.

Esta forma de expressão fica bem nos registros circunstanciais do jornalismo de eventos e fatos contingentes. Não que muitas obras de notória expressão não tenham se valido dos “fait divers” do cotidiano. Stendhal descobriu esta fonte inesgotável de inspiração e dela tratou magistralmente. Tom Wolf, Gay Talese,Truman Capote e Norman Mailer demonstraram o que pode ser extraído dos fatos e ocorrências aparentemente irrelevantes e como dar-lhes compostura literária. O “new journalism” americano foi invenção de criaturas talentosas que deixaram um rastro literário significativo.

O texto, assim como o conteúdo que ele transmite, são componentes da arte da escrita. A literatura é construída pelo seu potencial narrativo, pela forma e a estrutura da linguagem que a liberta ou aprisiona.

Citação provida da referência bibliográfica com a indicação precisa da página inspiradora é uma especie de contra-prova de um talento inseguro, a necessidade do aval de quem tem a sua cultura arrumada em caixinhas bem asseadas. Não há, é bem de ver, como justificar o plágio, avanço de assentamentos indevidos em propriedade alheia.

A cultura não se mede pelo aliciamento de autores ou pela listagem exaustiva de textos dos quais muitas vezes temos notícia por mãos terceiras. Umberto Eco faz menção aos “leitores das orelhas dos livros” e de uma certa cultura acumulada pela crítica aos textos que nunca foram lidos.

Para concluir, a lembrança de um episódio que se perde nas minhas recordações de estudante bolsista em Paris.

Fui ter a uma instituição renomeada pelas abordagens no campo do que se chamava “economie social”, da qual saíram especialistas e doutores brasileiros de notável expressão. O Institut du dévelopoemrnt économiqueet Social — IEDES, dirigido por François Perroux, em Denfert-Rocheraux , de frente para a prisão De lá Santé …

Tínhamos por obrigação a leitura de um livro a cada mês e o fichamento sob a forma de resumo crítico em fichas. Durante as aulas práticas, que as havia teóricas, bem ao gosto do cartesianismo francês, uma jovem professora, culta e bela, podia escolher qualquer um dos presentes para apresentar de viva voz o seu “resumo” e mostrar as fichas da respectiva da leitura. Um traço da burocracia intelectual da academia naquela França anterior ao mês de maio de 1968.

Solicitado a assumir o púlpito, um estudante do Congo, com as marcas indeléveis da sua nobiliarquia de origem, estampada na face — um príncipe vá-se imaginar — começou a sua litania.

Ao cabo e ao termo da exposição, veio a cobrança inevitável:

“Les fiches, Monsieur!”

E a resposta insolente de um colonizado:

“Les fiches, chère madame, je les ai oublié avec toute ma culture — chez moi!”

Paulo Elpídio de Menezes Neto é cientista político, professor, escritor e ex-reitor da UFC

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