“Toda atividade produtiva ou não leva o cearense à mercancia. Somos, por índole e natureza, os cearenses, mercadores, comerciantes e negociantes”, aponta o cientista político Paulo Elpídio de Menezes Neto.
Confira:
De tanto mexer em meus livros, dei com alguns deles recolhidos entre textos de guarda, isto é, de leituras interrompidas.
Não os deixei escondidos por esquecimento ou por censurável desleixo. As leituras que me prendem a atenção e me provocam reflexão, ponho-as na contabilidade de tarefas interrompidas. Retomo-as logo que posso para revolver as minhas razões que me aconselhem a elas retornar.
Tenho em mãos “ROTINA E FOME EM UMA REGIÃO CEARENSE”, de Luiz Fernando Raposo Fontenelle, Edições UFC, 1969.
Fruto de uma cuidadosa pesquisa antropológica, o autor retoma neste livro, algumas hipóteses de trabalho que despontam em artigos e ensaios que publicou durante a sua permanência no Ceará, como professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC.
Interessei-me em retomar o texto para uma análise mais extensa em outra oportunidade. Por enquanto, anima-me proceder a uma recensão de algumas ideias esquecidas que assinalam o pensamento de Raposo Fontenelle.
Da sua alongada tarefa de pesquisador, internado em algumas regiões cearenses, das copiosas entrevistas conduzidas no enquadramento das pesquisas de comunidade, Fontenelle deixou em grossas pinceladas o retrato, ainda que provisório, do caráter do cearense em meio a uma cultura pouco estudada pelos historiadores. Faltavam a muitos deles, entretanto, mesmo aos que mais produziram sobre o Ceará, a adequada formação antropológica que lhes permitisse mergulhos mais profundos na história de vida do povo cearense.
Pois Fontenelle fez desses mergulhos, e expôs algumas ideias que carecem, todavia, de maior cuidado teórico, à espera de analistas mais rigorosos.
Toda atividade produtiva ou não leva o cearense à mercancia. Somos, por índole e natureza, os cearenses, mercadores, comerciantes e negociantes. No longo roçado da produção de bens, importa a transação, o negócio de “compra-e-venda”, mais do que a geração do produto.
Os livreiros da Cabul eram, antes de se apresentarem como editores, produtores de livros — mercadores do produto, no qual investiam somas valiosa e os conduziam aos bazares para negócio firme com os ricos, primeiros consumidores registrados de livros copiadas ou de edições impressas…
No Ceará, reflete Fontenelle, toda atividade se desenvolve em função do lucro em perspectiva. O negócio fixa as regras de quem produz alguma cousa.
O médico, oriundo de famílias abastadas, alcança o sucesso ao tornar-se “empresário” na sua clínica ou em situação societária com um detentor de capital. Os profissionais e os negociantes têm o comércio como instrumento da sua riqueza. Os industriais são, antes de tudo, negociantes, gente ativa e hábil no manejo das artes de Mercúrio…
Ademais, por viverem em terra pouco pródiga e curtos sendo os haveres a que hão de recorrer, a instância pública, os negócios fechados nas abas do Estado, são os aprovisionadores da vocação do cearense para a mercancia… Nada parece “mais público”, no Ceará, do que a iniciativa privada… A parceria público-privada na economia e em outros cometimentos da nossa capacidade empreendedora, não é um desvio censurável, é o traço endogâmico que desponta na nossa cultura – é da natureza da gente do lugar.
Não vejo como fugir ao desafio de retomar esta tese desafiadora de Raposo Fontenelle.
Paulo Elpídio de Menezes Neto é cientista político, professor, escritor e ex-reitor da UFC