Com o título “Da atualidade de uma obra e da perspicácia do pesquisador”, eis artigo de Valdélio Muniz, jornalista, analista judiciário, mestre em Direito Privado, professor da Fadat e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GRUPE) da UFC. “No momento em que se discute a indicação de novo membro para o STF, nada mais salutar do que refletir sobre o papel decisivo que tem essa Corte (por meio de seus integrantes), transcendendo o debate acerca de escolha pessoal, política, étnico-racial e de gênero, elementos que, claro, devem ser combinados ao que essencialmente deve contar: o compromisso do(a) eventual indicado(a) com o dever de zelar pela concretização plena dos ideais sociais inseridos na constituição cidadã de 1988”, expõe o articulista.
Confira:
Há poucos dias, ao reler uma obra publicada em 2001 e reeditada (ampliada e atualizada) em 2009, pude confirmar, mais uma vez, o quanto uma pesquisa de fôlego, robusta e bem delineada no seu objeto e nos propósitos, é capaz de permanecer atual mesmo após cerca de 25 anos. É o caso do livro O Supremo Tribunal Federal na Crise Institucional Brasileira, de autoria do pesquisador perspicaz cearense, autor de mais de 30 obras, o subprocurador-geral do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ele desenvolveu, como tese do doutorado concluído em 2000 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um estudo de casos em que verificou diversas “contribuições” do STF para a instabilidade no Brasil.
Apressadamente, pode haver quem contraponha: mas, na história recente, não houve contribuição decisiva do STF para a preservação do Estado democrático de Direito? Sim, sob o ponto de vista da defesa da democracia, os ministros daquela Corte, tanto em suas atuações no Supremo quanto à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tiveram, especialmente nestes últimos três anos, inquestionável papel. Entretanto, a atuação da Corte maior do Judiciário brasileiro, como guardiã da Constituição Federal, não se limita a isso. Ademais, cidadania e estado democrático têm sentido ainda mais amplo, pois perpassa a concretização de direitos políticos e civis e, também, de direitos sociais, econômicos e sociais, entre outros.
A pesquisa mencionada expôs decisões políticas do Supremo (já naquela época), dificuldades (ou crises) no relacionamento entre os poderes instituídos (especialmente entre o Judiciário e o Legislativo), descrédito e ineficácia de muitas decisões judiciais, afinação do STF (em sua composição de então) com a política governamental, desgastes do Supremo perante a própria magistratura nacional, instabilidade das instituições e fomento da violência, empobrecimento público, insegurança e desconfiança da sociedade. Parece ter sido, portanto, sim, produzida nos dias presentes.
Mesmo diante da mudança parcial de grande parte de sua composição atual, assim como dos titulares e dirigentes dos demais poderes (Executivo e Legislativo), o STF vivencia divergências e embates com o Congresso Nacional. Nem é preciso grande esforço para enxergar, por exemplo, a queda de braços que se dá em torno das emendas parlamentares, das ameaças de anistia aos condenados pelo STF nos atos do 8 de janeiro de 2023 e em outras questões. Não é à toa que mais de 20 pedidos de impeachment de ministros do STF já foram apresentados, em período recentíssimo, ainda que mantidos engavetados pela direção do Legislativo, em meio a esforços de preservar algum resquício de harmonia.
No campo dos direitos sociais, especialmente em matérias de ordem trabalhista, quem observa com atenção os posicionamentos mais recentes do STF também percebe sem dificuldade o quanto a
maioria dos seus membros têm defendido com impressionante afinco o ideário liberal-econômico que, claramente, favorece, sim, o capital em detrimento da preservação de direitos conquistados a duras penas pelos trabalhadores ao longo dos dois últimos séculos. É o que se vê, por exemplo, com frequentes decisões em repercussão geral como as que envolvem terceirização, trabalhos plataformizados e custeio sindical e que ameaçam a competência (e a própria sobrevivência) da Justiça do Trabalho em casos como os relativos à chamada pejotização. Quem quiser se aprofundar tem à disposição outra brilhante e mais recente obra do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-10ª Região, que compreende Distrito Federal e Tocantins), o também cearense Grijalbo Fernandes Coutinho, denominada JustiçaPolítica do Capital: a desconstrução do Direito do Trabalho por meio de decisões judiciais.
Daí porque permanecem atualíssimas as indagações lançadas por Gérson Marques em 2001: “O STF está afinado com a sociedade para assegurar-lhe os reais interesses? Considerando a possibilidade de os interesses políticos serem contrários aos da sociedade, estaria o STF consciente e apto a tutelar os últimos? Das vezes em que a sociedade, ferida em seus direitos, bateu nos umbrais do STF, quantas delas este lhe abriu as portas da justiça, especialmente no período posterior a outubro/88? Qual foi a postura adotada pela Corte em grandes casos surgidos depois de outubro/88, envolvendo questões altamente relevantes, de ordem política, econômica, social e institucional?”.
Como bem pontuado por Gérson Marques, na abordagem interdisciplinar corretamente posta como sociologia constitucional, o pronunciamento do STF tem grande relevância, pois “pode mudar o
rumo do País, o perfil da política socioeconômica”. Ele também destaca ter desenvolvido sua pesquisa sobre a atuação da Corte exatamente pela consciência da importância do Judiciário, por respeitá-lo e defendê-lo como Instituição: “Preferimos colaborar com as instituições nacionais, apontando-lhes as falhas e lhes sugerindo aperfeiçoamento, ao invés de simplesmente sabujá-las, pois é apontando-lhe as deficiências que contribuímos para o seu aprimoramento”.
Transcrevo ainda, para reafirmar a atualidade da pesquisa, o que dissera Gérson Marques em 2001 (e reafirmara em 2009): “O rumo que vão tomando as coisas nos tem preocupado bastante. E o futuro, óbvio corolário do presente, antecipa presas aterroradoras. Não bastassem os turvos dias hodiernos, piores (muito piores) ameaçam sobrevir, já mostrando sua face de final de século: desemprego, violência, miséria, concentração de renda, desajustes, doenças, opressão, decadência moral, corrupção, impunidade, inversão de valores…”.
No momento em que se discute a indicação de novo membro para o STF, nada mais salutar do que refletir sobre o papel decisivo que tem essa Corte (por meio de seus integrantes), transcendendo o debate acerca de escolha pessoal, política, étnico-racial e de gênero, elementos que, claro, devem ser combinados ao que essencialmente deve contar: o compromisso do(a) eventual indicado(a) com o dever de zelar pela concretização plena dos ideais sociais inseridos na constituição cidadã de 1988.
*Valdélio Muniz
Jornalista, analista judiciário, mestre em Direito Privado, professor da Fadat e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GRUPE) da UFC.