Com o título “Da Rebeldia Operária ao Extremismo de Direita”, eis artigo de Rui Leitão, jornalista, historiador e escritor e membro da Academia Paraibana de Letras. “Desde 2019, o Brasil tem visto a multiplicação de células neonazistas, agora impulsionadas por uma retórica nacionalista exacerbada, que apropria-se do lema “Brasil acima de tudo” — frase de forte carga simbólica, similar ao “Deutschland über alles” utilizado pelo regime de Hitler. A contradição é gritante: o discurso patriótico convive com a defesa de interesses estrangeiros, em claro desprezo à soberania nacional”, expõe o articulista.
Confira:
Em 1983, jovens de origem operária, inspirados pela estética dos skinheads ingleses — com cabeças raspadas, jaquetas bomber e coturnos — criaram, nos subúrbios de São Paulo, um grupo que ficaria conhecido como Carecas do Subúrbio. Surgido em meio a um período de efervescência política, o movimento reunia jovens das camadas mais empobrecidas da classe trabalhadora, que rejeitavam a alienação e buscavam um espaço próprio de afirmação.
Desde o início, o grupo foi marcado por contradições internas. Conviviam ali ideais nacionalistas, antirracistas e anti-imperialistas com outras vertentes que flertavam com a extrema direita. Ainda assim, na origem, o discurso era de resistência às desigualdades sociais, à corrupção e à exploração, com críticas contundentes à política institucional e aos partidos. Reivindicavam um “movimento sério, um estilo de vida, um movimento de brasileiros, sem negócio de fora dos subúrbios”.
Com o tempo, porém, parte dos integrantes passou a adotar símbolos e discursos neonazistas, criando uma dissidência batizada de Carecas do ABC. A partir dos anos 2000, o grupo se reorganizou pela internet, sendo monitorado pelas autoridades após o cometimento de crimes como agressão e formação de quadrilha.
Entre os episódios mais brutais está o assassinato de Edson Neris da Silva, espancado até a morte por estar de mãos dadas com seu companheiro em praça pública. Em outro caso, três membros do grupo ameaçaram dois adolescentes com armas brancas por estarem usando camisetas de bandas punk. As vítimas foram forçadas a saltar de um trem em movimento: um deles morreu, o outro perdeu o braço direito.
O discurso moralista dos Carecas sempre esteve atrelado a um perfil autoritário e excludente. O grupo perseguia aqueles que não se encaixavam em sua visão de mundo, sendo notoriamente machista, homofóbico e antissemita. Embora admitissem negros e nordestinos, mantinham uma postura de intolerância, reproduzindo a lógica de hierarquia militar e de supremacia ideológica. Embora o grupo original esteja praticamente extinto, seus códigos de comportamento e pensamento sobreviveram e ganharam novos rostos entre os jovens adeptos da extrema direita.
Desde 2019, o Brasil tem visto a multiplicação de células neonazistas, agora impulsionadas por uma retórica nacionalista exacerbada, que apropria-se do lema “Brasil acima de tudo” — frase de forte carga simbólica, similar ao “Deutschland über alles” utilizado pelo regime de Hitler. A contradição é gritante: o discurso patriótico convive com a defesa de interesses estrangeiros, em claro desprezo à soberania nacional.
O crescimento do antissemitismo no Brasil está, hoje, diretamente associado à política da extrema direita. Mais de noventa anos após a ascensão de Hitler, os horrores do nazismo vão se tornando memórias distantes — esquecidas, banalizadas ou até distorcidas. Essa perda de memória histórica favorece o avanço de discursos caricatos e extremistas. Lideranças contemporâneas promovem uma espécie de revisionismo histórico, relativizando os fatos em vez de enfrentá-los, abrindo espaço para que os bárbaros sejam novamente admirados e cultuados.
Estamos diante de um esforço deliberado de higienização da memória coletiva, que procura esvaziar as cicatrizes do passado e semear novos ódios. Relembrar essa história não é apenas um exercício de memória — é uma urgência democrática.
*Rui Leitão
Jornalista, historiador e escritor, membro da Academia Paraibana de Letras.