“Deseducamo-nos graças ao esforço sincero, comovente, até, de governos que transformaram a educação brasileira em um expediente de produção de ignorância premeditada”, aponta o cientista político Paulo Elpídio de Menezes Neto
Confira:
“The importance of being earnest”, Oscar Wilde
“Governar a Itália não é impossível; mas é inutil”, de um certo Duce, dependurado pelos tornozelos por antigos e solidários falangistas
“O Brasil não é para principiantes”, Tom Jobim
Fiquei a remoer o que li na coluna de uma jornalista de respeito. Ficou-me atravessada na garganta a ideia da absoluta inutilidade de ser brasileiro. [“A gente somos inútil”, Ana Paula Henckel, na revista Oeste”]
Pode não ter sido exatamente que a comentarista quis externar. Afinal, o que se escreve e o que se fala chega aos ouvidos do receptor (neste caso canhestro, eu próprio), na medida da reação de quem ouve ou lê, do entendimento e, digamos, da indignação de cada um.
Aprendi com alguns amigos cultos e graças a leituras furtivas de Barthes, a que me dei o trabalho e a iluminada penitência de fazer, que a mensagem, ideia ou opinião emitida por alguém, pode ser percebida pelo “receptor” “a contrário” ou, pelo menos, muito diferente do pensamento elaborado pelo “emissor”.
Pois bem, ando a pensar com confessada sinceridade sobre a desimportância de viver-se em um país no qual se fez da festa uma referência civilizacional e orgulho nacional do “jeitinho” de vida que leva, e passa o tempo que lhe sobra a buscar ou construir identidades duvidosas para fixar a nossa condição de povo e de nação.
Estamos a renomear o nosso passado, “chutamos o pau da barraca” da história, extinguimos valores, alguns inúteis de nascimento, admitamos, não mereciam estar de pé… Mas não sabemos o quê fazer do nosso presente. Mergulhados nessa patriótica ignorância, estamos a inventar um futuro para lá de improvável. Não erraríamos se o admitíssemos como politicamente obsceno, pelo respeito mínimo que os seus “usineiros” revelam em relação à realidade.
A gente “nos tornamos inútil” de verdade. O país transformou-se em uma piada planetária. Com parte significativa dos brasileiros sem educação, deseducada, melhor se diria, dominada pela cultura da mediocridade que se vai implantando como mostra de uma conquista democrática sem precedentes, registro da nossa deplorável contemporaneidade. Pusemos na cabeça que democracia é alguma coisa de sabor popular, é o retrato da simplicidade, ausência de regras, um sistema no qual o voto é moeda (linearmente, moeda), e que todos são iguais perante a lei, ainda que os nossos amigos e parceiros de interesses sejam mais iguais do que os outros.
Deseducamo-nos graças ao esforço sincero, comovente, até, de governos que transformaram a educação brasileira em um expediente de produção de ignorância premeditada. Em um negócio promissor, só igualável ao dos empreendimentos dos 34 partidos políticos que administram parte considerável do orçamento da república.
Sem que nos déssemos contas, a educação superior foi privatizada, em um piscar de olhos, precisamente pelos que defendiam a educação pública (não uma educação estatal), com o arrimo e Alma Mater do conhecimento e da cidadania no País. Ao invés de tratar da expansão ordenada da educação superior, os novos educadores, movidos a verbas públicas, terceirizaram as responsabilidades do setor para a iniciativa privada — pagam a conta e compartilham lucros, perdas e danos educacionais com empresas promissoras nos seus ganhos. Por paradoxal que possa parecer, a educação superior foi privatizada, no Brasil, em governos de confessada vocação socialista.
De que valeram os esforços de tantos educadores para construir uma universidade pública com um lastro seguro do controle público, com suporte amplo de meios para os estudantes carentes e para mantenedoras privadas.
De Anisio Teixeira, Darcy Ribeiro, Newton Sucupira, Florestan Fernandes, Simon Schwartzman, Eunice Durham, Sergio Costa Ribeiro, Edson Machado e outros mais — do que é feito das suas convergências e divergências de planejadores, das formulações que punham a educação brasileira nos trilhos do bonde da história? Caídas estão no esquecimento da inutilidade das coisas que pensaram, urdiram e foram abandonadas pelos instrumentador de suspeitas políticas públicas que nunca se materializam e tomam corpo no Brasil.
Enquanto políticos e governantes terçam as armas da sua incontinência (incompetência?) verbal e da desrazão de que são a expressão mais viva, ficamos a imitar, como macaquinhos, os modismos que nos seduzem. E que mantêm muitos na ignorância e outros na abastança de um extraordinário surto de empreendedorismo.
A educação superior no Brasil em áreas críticas, pela sua importância, está aparentemente sob o controle do Estado. Talvez assim ocorra com o aparato burocrático e de gestão que canalizam os meios essenciais da sua subsistência. A rigor, entretanto, são grandes empresas que cobrem boa parte do território do País, divididos entre si os espaços vitais de um mercado que não para de crescer. Porém, não falta espaço para os pequenos negócios, prósperos e rentáveis.
Na verdade, saem dessas fábricas de titulação acadêmica, profissionais, em áreas essenciais, para um mercado de emprego em vertiginosa rapidez de expansão. Novas profissões e atividades insuspeitadas surgiram, outras desapareceram, tomaram feições especializadas — e as universidades públicas e privadas continuam a derramar os mesmos conhecimentos e as práticas obsoletas de outros tempos.
Mas, o nó cego do nosso descompasso histórico acumulado não se resume a atividades econômicas e sociais setorializadas.
É a matriz, mesmo, da inteligência brasileira que murchou, perdeu a força e a cor, se é que fomos diferentes antes, algum dia, nas nossas ancestralidades distantes e mal queridas…
Descobrimos, tardiamente, a nossa inutilidade (ou seria a nossa desutilidade?) como cidadãos; somos velhos antes de termos feito alguma coisa de “útil”… Somos vítimas de uma atração invencível pela modernidade. A novidade nos seduz, com o seu enorme poder de persuasão, ainda que não saibamos o quê dela podemos fazer.
Vivemos das glorietas miúdas do passado. Nossa referência de grandeza e qualidade é a “América Latina”, espécie de padrão de excelência que nos orienta e nos confronta. Comparamo-nos com a América Latina, à moda “porque me ufano de meu País”. Somos o “maior País da AL”, qualquer hospital por aqui “é o melhor da AL”, nossas florestas tinham mais flores, outrora, “nossas vidas, mais amores”…
Não que tenhamos passado de moda. Nunca estivemos na moda. Nossa história política é um espelho de dolorosos reflexos. É um sombra de cristal com muitas manchas deitadas pelos nossos desacertos.
Não adianta este impulso do “vai dar certo”, arremedo de um otimismo assustado que mais parece um descarrego do consciência em atraso.
Este texto é uma catarse, um descarrego para Oxóssi, um alô para São Judas Tadeu… Não saiu fácil como os otimistas contumazes poderiam julgar. É a angústia exposta de um carecido de fé, ainda que de esperanças esteja bem servido. Menos de senso de humor e de uma braçada de ironia que fazem com que não me venha ocorrer a decepção de um respeitável procurador diante de um microfone silente e indiscreto…
Paulo Elpídio de Menezes Neto é cientista político, professor, escritor e ex-reitor da UFC